quinta-feira, 1 de julho de 2010

o gordo

 
há um homem na minha rua a quem a gentinha decidiu chamar de gordo. é um senhor antipático e carrancudo, as suas trombas são grandes e conhecidas, dizem eles. este sujeito tem a maior, melhor e mais bem recheada casa cá da terra. o seu interior é repleto dos mais bonitos móveis feitos à mão com o maior detalhe nas mais diversas regiões do globo. as paredes foram deixadas ao encargo dos mais reconhecidos pintores, escultores, todo o tipo de artista. tem quadros lindíssimos, bustos reais, os mais belos espelhos.
fugindo aos ouvidos da gente do meu bairro, vou contar-vos a história do gordo. antónio josé marques e boa vila é um homem infeliz e não sabe porquê. nascido em berços de cetim, babou-se à noite em almofadas de seda e amamentou-se dos seios mais gordos que conseguiram encontrar. mas este desajeitado sujeito, a quem o termo fome significa duas horas após o almoço e seis antes do jantar, nunca teve de procurar na ementa daquele bom restaurante que tanto falam o prato mais económico ou reclamar com o garçon da requintada pastelaria da esquina por ter trazido um eclair recesso ao invés daquele apetitoso que chamava da montra. aquele lugar onde a tia vai tomar o chá da tarde com a fiel esposa da sua companhia nocturna, ouvindo-a lamentar-se que o seu homem já não cumpre os seus deveres conjugais. todas as noites antónio adormece a pensar:
"mandei elevar nesta terra a maior casa que consegui imaginar, um lugar para trazer toda a gente desde o sr. serafim da pequena loja de ferragens à sra. margarida cujos dias são passados à varanda julgando a vestimenta das pessoas que vê. todos os dias peço ao meu chef para cozinhar três vezes o necessário, não vá alguém querer visitar-me de surpresa e com aquela larica! mas ninguém aparece e eu dou por mim a comer por dois. guardo na garagem os mais espaçosos, confortáveis e modernos automóveis porque um dia vou levar o bairro a passear àquele bonito lago onde o meu pai me deixava ao cuidado da ama quando a mamã estava de férias com as amigas. as minhas roupas feitas por encomenda aos melhores alfaiates para que se orgulhem de mim quando me vêem passear diante das suas portas. como pode esta gente desdenhar-me? são loucos, é a única explicação!"
o homem gordo, a quem nunca faltou o papel higiénico nas horas mais críticas, nem percebe ao certo o que é o negócio milionário que herdou do seu falecido pai, mas acha que tem algo a ver com comboios. nem se preocupa, os homens do fato e gravata escolhidos a dedo sabem como o hão-de gerir e contribuir-lhe a sua merecida porção. criado pelas mãos calejadas da mãe do rapaz irrequieto, que morava na rua debaixo antes de ir estudar para engenheiro noutra cidade, antónio não percebe aquele sentimento picado no coração. é o vazio da solidão onde um amigo é a única solução. sim, um amigo foi o que sempre lhe faltou e o dinheiro do pai nunca pôde comprar (ou sequer quis, porque nem reparou que o rapaz precisava). mas como fazê-lo chegar, como cativá-lo? não entende como os outros conseguem, como ninguém quer brincar com ele que tem os melhores brinquedos! ah! ele nunca os convidou. habituado a ver o seu pai receber as visitas bajuladoras daqueles homens e mulheres sempre alegres pelos bens que possuía, por os poderem saborear. pensou que a gente do bairro iria, de maneira semelhante, também gostar que ele tivesse boas coisas. um dia iriam aparecer à sua porta saudando a sua bela fatiota, os aperitivos que a maria fez e a nova mesa de bilhar. tal nunca aconteceu porque, para a gentinha do bairro, este homem não era nada mais que um rico herdado que nada mais sabia fazer além de mostrar aos outros o que ele tinha a mais e eles de menos.
"olhem-me só para ele! tão gordo das refeições triplas daquele chef que mal cabe nas calças feitas por medida! e o tamanho daquela casa que dava para albergar todo o povinho deste nosso pequeno bairro? aposto que o desgraçado descobre um compartimento novo todos os meses! aquelas mobílias em madeira de cerejeira que dizem terem vindo da índia. cá também se fazem boas gavetas para guardar os trousses e as meias! e nem sabe desenrascar-se sozinho com tanto empregado para caminhar por ele, se assim for preciso."
são as palavras do povo, na sua humilde inveja da avareza do gordo, a quem nunca ninguém deu a escolher ser rico ou pobre. nunca foram à sua porta pedir farinha, supuseram de logo que tal lhes seria negado. nunca pediram ao gordo para ser seu amigo porque o seu pai nunca deu gorjeta quando ia tomar o café e ler o jornal na taverna do sr. alberto.
(são estes os problemas daquele pequeno mundo que é o meu bairro e resumem-se a saber dar o braço a torcer e à falta de comunicação, boa comunicação!)