quarta-feira, 27 de julho de 2011

a paixão do estripador

ele pensa que estão mortos, todos os corpos que dilacerou. mas não, esses vivem na sua cabeça. suspirando constantemente sentenças de vingança. homens, mulheres, jovens e idosos esventrados, sem distinção. é um transeunte, sempre deambulante. segue os murmúrios ensurdecedores, a sanidade já desapareceu há muito. o plano de fundo altera-se, os companheiros surgem e nada mais. vítima atrás de vítima, num ciclo que repetirá até ele próprio se tornar um eco. mas surge uma voz, que se destaca das outras. nesse dia, ele pisa o alpendre e bate à porta. tudo está escuro e sereno, só os corvos assobiam a sua melodia favorita. aquela que o havia de esperar com um sorriso, jaz deitada no chão ensanguentado. implora piedade - que o coração nunca fora tão pequeno, como no dia em que as vozes de todos os demais se juntaram para ceifar a sua paixão. apunhalada no peito, pela própria mão, quando ela o rebaixou a convidado.

sábado, 23 de julho de 2011

não, longe

aquele grupo era constituído por mim e pela madalena, a minha companhia, ao que se juntou o josé e a eduarda. o plano era esperar os restantes dois, o pedro e a mafalda, para jantar e apreciar a sétima arte. sempre me considerei uma pessoa com fracas aptidões sociais, sem alguma vez saber como agir perante os da minha espécie ou o que a sociedade em geral espera de alguém como eu em certas ocasiões. contudo, há determinadas interacções que se consideram básicas. todos nós as activamos instantaneamente, sem pensar, como respirar. encontrámos o josé e a eduarda primeiro. a madalena cumprimentou a rapariga, com um beijo em cada face, e repetiu o mesmo procedimento para o josé. eu fiz a minha parte, também. apertei a mão do rapaz, com força moderada. um bom cumprimento, treinado e curto, como este deve ser. faltava-me interagir com a madalena. depois de observar o sucesso da actuação entre as duas, pensei que imitá-lo seria o suficiente para despachar aquilo que, para mim, é um momento desagradável. iniciei o movimento de beijar cada uma das faces da eduarda, quando fui interrompido por palavras por ela pronunciadas. "não, não quero." foi o que ela disse e a noite prosseguiu conforme o programa.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

quando nos conhecemos

- lembras-te do dia em que nos conhecemos?
- ah, esse dia. sim, lembro-me, claro.
- foi a primeira e única vez em que tive o coração partido antes de abandonar as minhas mãos.
- preocupas-te demais, joão. estamos aqui hoje, juntos, não estamos?
- estamos sim, para minha eterna felicidade.
- é porque tinha de acontecer, independentemente das voltas e reviravoltas que fomos forçados a superar.
- acho que tens razão, joana.
- então vá, não penses mais nisso.
- quando me lembro, é uma visão tão viva como assistir a um filme em alta definição. eramos nós, sozinhos numa mesa para dois, quando entrou aquele rapaz no café. estava a contar-te algo e os teus olhos vidraram-se em tal personagem, não mais os teus sentidos tiveram noção da minha presença. senti-me evaporar no ar, tornar-me um fantasma no seio deste mundo tão vivo. penso que se me tivesse levantado e saído não terias reparado.
- oh, deixa-te dessas coisas. é claro que teria reparado, joão! mas ele era tão charmoso, às vezes uma pessoa não se contém.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

a noite

a noite, para mim, é uma viagem idiossincrática. os meus sonhos são um interruptor que separa o adormecer do acordar. mal me deito e o sol já faz por me massacrar. nunca houve um doce luar, é tudo um ciclo vicioso de sofrimento. quando me falta, anseio por ela. mas com o primeiro raiar do brilho da lua, abomino a sua existência. rogo-lhe pragas para que me abandone à eterna escuridão do sol. o mundo estagnou e eu sou a única peça móvel neste imenso tabuleiro, mas escolho ficar. escondo-me à vista de todos, imobilizado até o medo desaparecer. senhora de negro, que chegas inesperada em pé levemente, guarda para ti o beijo do crepúsculo e abraça-me na alvorada. apenas o sangue da cidade faz brilhar junto de mim um pequeno refúgio luminoso, mas é arte do homem. prefiro o ténue cintilar das estrelas que tão orgulhosamente ousas apresentar, noite após noite. o que esperas de mim, eu não sei. tudo o que preciso é uma cantiga de embalar, para que eu saiba que adormeci contigo ao lado. quando acordar, preciso de saber que foi tudo um belo sonho e não apenas um pressionar no botão que altera a faixa diária.

sábado, 2 de julho de 2011

testamento

o mundo vai acabar amanhã e eu tenho nada para mostrar ou rever. cresceu-me uma espiga no coração, com os escassos nutrientes reminiscentes de um passado farto, da qual o presente tem nada mais do que uma ténue lembrança. a quem dedico eu toda esta minha herança?