quinta-feira, 29 de setembro de 2011

o mal da alegria

existe uma razão
(uma muito boa razão, eu diria)
para todo o coração
que sofra do mal da alegria!

a vontade de dar tudo
(tudo por tudo, até ao infinito)
na voz que fala mudo
a confissão de um só grito!

desistir sabe melhor
(desistir é honrado, também)
quando há falta de amor
na presença de alguém.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

o político insensato

prometo jamais ser contente
até o ser novamente!
ripostar com os dentes
de maneiras diferentes.
prometo largar a tristeza
no intervalo da felicidade!
até ter a certeza
da morte por saudade.
prometo ser escravo
quando mo derem por opção!
quando as noites forem claras
como os dias em que estão.
prometo voltar a amar,
quando amar for seguro!
o coração é um palco
onde já não figuro.
prometo vir a temer
o perder antes do perder!
o medo de encontrar
nada mais do que mero ar.
prometo sentir-te
pelo puro prazer de sentir!
essa tua paixão
é um continuar a mentir.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

troquei o nome para não saberes

"querida benedita" começa
a informal e típica carta,
mas daquilo que é igual
já bem estarás tu farta.

perdoa-me a demência,
a arrogância e a ousadia.
aqui encontro a coragem
que naturalmente não teria.

já antes das histórias
me causas certo tormento,
a única estrela viva
no frio do pensamento.

os teus olhos castanhos,
esse bom cheiro aromático,
um tic-tac do relógio
e o sorriso mais simpático.

os dias envoltos em silêncio,
irrefutável prova são
daquelas vontades contidas
a que chamam devoção.

horas e horas e horas,
oito dias por semana.
pode parecer interminável,
mas a aparência engana.

tu caminhas sobre música,
uma melodia em tom de si.
se as notas falassem diriam:
és a mais bela mulher que vi.

o meu desejo era cantar-to
com um musical no rivoli,
mas a verdade é só uma:
perdi o coração em ti.

sem mais atrasar o adeus,
isto apenas tenho a dizer:
se algo partilhas comigo,
fá-lo antes do amanhecer.

vem pela calada da noite,
não me temas massacrar,
se o destino deste coração
for o cruel vazio do mar.

sábado, 24 de setembro de 2011

o rapaz com o casaco de metal — capítulo III: o coração num frasco de vidro

não há aulas depois das quatro da tarde e pouca gente gosta de ir para casa antes das seis. benjamim preferia ficar pelo largo do cruzeiro a observar desavergonhadamente a anabela. escrevia compulsivamente no seu caderno de bolso as equações que pensava descreverem a beleza daquela rapariga que se sentava no mesmo banco de jardim - em frente do seu - todas as tardes a desenhar. quando as aulas terminavam, anabela colocava um vazio frasco de compota em cima do muro. todos os dias, esse frasco continha algo diferente para ela desenhar. por vezes eram flores e insectos, outras tantas eram apenas os mais diversos objectos inanimados. o caderno de benjamim era um registo minucioso de tudo o que ela já pousou no muro e desenhou, dentro daquele vazio frasco de compota. o amor é coisa dos pobres, burros e ignorantes! não é e nunca foi algo indicado para alguém com o complexo intelecto de benjamim. é, certamente, o único conceito em todo o universo que nunca entendeu. por essa razão, ia todos os dias descrever matematicamente anabela a desenhar no largo. através das suas cuidadas observações, concluiu estar apaixonado. comparou exaustivamente com o que havia aprendido e pensava ser o amor dos seus pais, vizinhos e colegas da escola. leu os grandes romances da literatura clássica e identificou todos os padrões de sintomas. só faltava conquistar a anabela. quis impressioná-la com o acto que os maiores românticos da história apenas conseguiram sonhar em fazer, sem jamais se terem aproximado de qualquer tipo de sucesso. esses homens que inspiram os de hoje e criam expectativas nas mulheres nunca passaram das palavras nos poemas ou das imagens nas telas. uma semana passou benjamim recluso no seu quarto, envolto nas suas experiências. finalmente conseguiu! os grandes amantes do passado invejá-lo-iam e histórias do seu grande feito de amor seriam contadas e cantadas durante as gerações vindouras. iluminaria todas as paixões futuras! confiante, benjamim regressou ao largo no dia seguinte. dirigiu-se ao banco onde se sentava anabela e pediu-lhe o seu vazio frasco de compota. prometeu trazer-lhe algo maravilhoso, que nunca se vira antes, só para ela desenhar. a rapariga estranhou o peculiar pedido, mas concordou. a sua curiosidade fora espicaçada! que objecto do mundo do fantástico teria benjamim preparado para si? o momento chegou. benjamim pediu que cerrasse os olhos. anabela assim o fez, empolgada com a surpresa. em cima do muro, o seu vazio frasco de compota foi colocado. com a permissão de benjamim, abriu os olhos. empalideceu! o sangue fugiu-lhe da cara, por momentos, antes de ter forças para gritar em terror. assim que retomou controlo dos sentidos, desapareceu a correr. do translúcido frasco escorriam as gotas de sangue de benjamim. estas dançavam em torno do seu coração, que ainda batia vigorosamente e o som característico que emitia "tum-tum, tum-tum, tum-tum". benjamim arrancara-o do próprio peito com tal arte que se manteve palpitante! no lugar que restou entre os pulmões, colocou um substituto biónico - desprovido de emoção humana. talvez seja essa a razão porque benjamim nunca compreendeu a reacção que teve anabela perante a maior declaração de amor a que este mundo alguma vez assistiu. esperava promessas de paixão e devoção eternas, reconhecimento por parte dos demais. foi então, nesse momento, que,  preso naquelas paredes de vidro, desistiu de bater o coração de benjamim. assim surgiu a sua obsessão em desvendar a teoria que rege o amor. a perpétua busca pela solução de uma equação imaginária, que só existia na sua cabeça. os jornais que se seguiram começavam com as manchetes sobre um novo assassino em série que arrancava os corações das vítimas e nada mais.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

o velho do outono

ainda não se fazem notar as folhas queimadas,
que já te chamam a ti outono.
eu conheço-te como o velho cansado,
que ora sente frio,
ora tem febre,
ora chora,
ou - quiçá - espirra.
prefiro atravessar a rua sempre que te vejo,
evitar-te a todo o custo.
és simpático,
mas a simpatia nunca encheu estômagos
(ou corações).
demasiados são os dias em que me fecho em casa,
observo-te passear pelo friso da janela
(ansiosamente à espera que partas).
és a razão porque mais de mim não é valente,
o isolamento torna-me carente
(já a tua companhia afoga-me).
dizem que sabes muito,
mas o que tu sabes sei eu e sei-o bem.
contam que passaste por bastante,
mas não imaginas o que já suportei.
querido outono,
vai-te embora,
que me deixas triste.

domingo, 18 de setembro de 2011

odeio estar apaixonado, ponto de exclamação.

são dias atribulados,
lábios estagnados,
olhos desidratados,
sonhos envenenados,
humores disparatados,
instrumentos desafinados.
eu odeio estar apaixonado!

quero neste sentimento
crédito a adiantamento,
viver o momento,
ser selvagem - violento.
já não aguento,
tirem-me o talento.
eu odeio estar apaixonado!

são os temores,
tremores e os calores,
todos os aromas e odores,
de todas as notas e cores,
são intensos sabores.
senhoras e senhores,
eu odeio estar apaixonado!

constante é a fadiga
em lutar esta intriga,
mas ainda há quem diga,
que por muito que a siga,
ela será só uma amiga
neste coração de urtiga.
eu odeio estar apaixonado!

terça-feira, 13 de setembro de 2011

o meu pássaro tinha um nome

uma vez apanhei um pequeno pássaro, estava caído no chão. ao pegar-lhe, dei-lhe um nome e foi meu desde então. não voava, não comia, mal respirava e pouco chiava. nunca soube de que espécie se tratava, nem tive a mínima curiosidade. para mim, era apenas um pequeno pássaro, com penas e bico e o nome que eu lhe dei. ele nunca respondeu ao belo nome que eu lhe dei, mas desde o primeiro dia que foi assim que o chamei. escovei as sebosas penas negras até ficarem suaves como o pêlo dos mamíferos. insisti comida naquele reduzido bico cor-de-laranja. dei-lhe o carinho que me ensinaram e o que eu pensava ser amor. mas o pássaro que eu apanhei do chão nunca respondeu ao nome que eu lhe dei. cuidei dele durante dias e noites, fins-de-semana sem dormir. escutava-o recuperar, enquanto o deslumbrava na gaiola onde o fechei. partia-me o coração vê-lo assim, enclausurado. seria o melhor para ele, eu pensei. se o soltasse fugiria, certamente, tentaria voar e caía no chão. dei-lhe todo o meu amor incondicional, tudo quilo que sei tratar-se do meu bom coração. mas este pássaro que eu colhi do ninho de morte a que apelidam de chão nunca respondeu ao nome que eu lhe dei. tão bonito que era, esse nome que eu lhe arranjei. os meus esforços compensaram, sem desistir um dia ou uma hora. peguei-lhe gentilmente com uma única mão e ouvi-o chiar alegremente. que bem que ele cantava, sem eu pedir ou mandar - não faria diferença ordenar, pois nunca respondeu ao nome que eu lhe dei. no meu maior acto de masoquismo, carreguei-o na minha mão até ao lugar onde o encontrei. sentei-me e abri a minha mão bem junto daquele descuidado chão. o pássaro de penas negras e bico laranja, de quem tão bem cuidei, levantou voo de uma só vez, sem hesitar ou olhar atrás. desde esse dia que eu volto ao lugar onde o achei. ali, sento-me no chão e espero, recordando o pássaro que vislumbrei quase morto no meio do chão. o pássaro que eu salvei, mas que nunca respondeu ao nome que eu lhe dei. uma vez gritei esse nome, o belo nome que eu lhe arranjei. pensei tê-lo visto ao longe, de relance. era uma pomba que veio mendigar alguma coisa - já nem sei. continuei a fitar o céu, à procura do pássaro por quem chamei. mas o pássaro que tanto amei nunca respondeu ao nome que eu lhe dei.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

um beijo contido

este beijo contido,
preso e falso arguido,
vontade própria tem
de ti - mais ninguém.

esta lábia barata,
bêbeda e insensata
que tão mal representa,
não mais se aguenta.

este olhar violador,
nítido como um rumor,
de leve um toque clama,
bruto como uma chama.

este beijo delinquente
age de cabeça quente,
escapou à corrente
e é agora frequente.

sábado, 10 de setembro de 2011

animal vadio

meu amor, meu amor,
porque és também tu dor?
porque te finges insensato
ou te escondes em pudor?
tu, que anseias ser tão fácil,
porque temes a nudez?
abre-te para sempre,
abre-te uma e uma só vez!

sem ti, todo eu é vazio,
consumido pela sarna
como um animal vadio!
o sentido perde significado
e o significado perde sentido,
sem ti, o eu está perdido.
dá-me como esmola
uma só noite contigo.

não me olhes sem ver,
não me fales sem ouvir,
não me toques sem sentir,
ou me leias sem escrever.
abraça-me sujo como sou,
no lugar onde sempre estou,
sem réstia de piedade!
abraça-me, só por saudade...

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

feira franca é tradição

o joão pediu e implorou
que o levassem à feira,
até uma cruz pousou
na mesa de cabeceira.

tudo fez pela rapariga,
de seu nome bela inês,
até inventou uma cantiga
e lá ia “um, dois, três”.

os vendedores apregoam
os mais lindos materiais!
são peças que escoam,
são esbeltos aventais!

o pai do joão bem tenta,
com a arte do regatear,
pagar menos de quarenta
para aos amigos se gabar.

“feira franca é tradição”,
diz a mãe envergonhada.
mas o pequeno joão
só pensa na sua amada.

a inês tem as mãos frias,
trabalha na banca de gelado.
o joão viu-a todos os dias,
mas ficou sempre acanhado.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

sonhar alto

injusta liberdade p'ra voar alto
p'lo sonho que a queda traz morte certa,
quando a mente jamais está desperta,
se se encontra o vil coração exalto.

como memórias industrializadas,
suspensas em frágil teia de aranha,
a pouco e pouco, o falso, em mim, se entranha
como às pobres almas que estão danadas.

espero quem, de mim, nunca suspeite,
se chegue e me abrace como um amigo
só p'ra me sussurrar "eu avisei-te."

no amor sou repúdio — um sem-abrigo,
que, sem me teres algum dia aceite,
já conto em mil as histórias contigo.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

tremo

não tenho frio,
não tenho calor,
não tenho medo
ou qualquer dor.

o mundo gira,
eu giro também,
eu giro quieto
à espera de alguém.

ainda estou rouco
de silêncio gritar,
desde o momento
em que te vi chegar.

pareço um pequeno,
por tanto tremer,
sem outra razão,
só de te ver.