quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

saudade

nessa cabeça, mais de mil histórias
ficam por contar — perdem-se por aí —
nunca se puderam tornar memórias,
nem nunca a triste sombra eu lhes vi.

nesta minha cabeça, sei só eu
os fantasmas que falam em gentil,
um a um, sussurram "o tempo morreu"
anunciando a vinda de outros mil.

há esse teu sorriso que cura tudo
e me cobre de orvalho matinal,
quando chega em vestido de veludo.

enquanto a ferida não é fatal,
de tantos homens, sou o mais sortudo
porque a distância nunca foi real.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

como as outras, em nada igual

tens olhos, como todas as outras,
castanhos, envolventes e esbugalhados.
sei que os usas como as outras
e que choras com eles fechados.

penso usurpá-los enquanto respiras
para espantar de vez as minhas iras.

tens lábios, como todas as outras,
carnudos, apetecíveis e solitários.
sei que os usas como as outras
e que os guardas em sete armários.

quero conquistá-los todos os dias
e ouvir as histórias que deles dirias.

tens mãos, como todas as outras,
suaves, delicadas e pequenas.
sei que as usas como as outras
e que acreditas serem de penas.

vou acorrentá-las ao meu peito,
a liberdade já não lhes é por direito.

tens cabelo, como todas as outras,
liso, escuro e bom de cheiro.
sei que o usas como as outras
e que enfeitiças o feiticeiro.

a mecha que guardo leva-me à demência
e o coração suplica por clemência.

tens noites, como todas as outras,
gélidas, negras e assombradas.
sei que as usas como as outras
e que acordas em vestes rasgadas.

desses cortes, sou o único culpado
de empunhar o punhal dourado.

procurei, sem descanso, de monte em vale,
para te encontrar na madrugada
e ainda que, em tudo, sejas igual,
eu não te trocava por nada.

assim como são diferentes todas as mães,
igual é apenas o nome das coisas que tens.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

palavras ocas

já não sei sobre o que escrever. sinto que já escrevi tudo sobre tudo e ainda não disse nada, como se toda a história da humanidade pudesse ser moldada numa só palavra e essa pertencesse a um dialecto que ninguém entende. o que importa todo o fantástico embelezamento se ninguém percebe? por vezes, preferia ser rude. se eu fosse rude diria tudo sem papas na língua; ainda que pudessem odiar o meu calão e ridicularizar a minha ignorância, seria compreendido. ao invés, nasci com mel no coração, que me entope as veias com grumos de cada vez que bate mais acelerado. acontece-me todos os dias, várias vezes até, e eu tento explicar da melhor maneira que consigo. tem dias que nem eu me entendo e este é um deles.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

saberei, noutro dia que não hoje

sigo por sombras, com o medo atrás,
olho para trás e vejo sombras.
quero e não quero,
sei e não sei,
alguém me leve para longe daqui
e lá de longe, bem de longe,
me traga de novo aqui.

é um caminho tão certo quanto incerto,
sigo correcto ou nem lá perto.
acelerado e parado,
a fugir e a ficar,
a sombra pede-me para ficar
e o sol seduz-me à liberdade
que me implanta a vontade de ficar.

escuto vozes, ora doces, ora tenebrosas,
uma só a duas vozes.
encantam-me e espantam-me,
são amigos e inimigos,
planeiam a neutralidade sobre mim
e o meu peito desmilitarizado
desobedece à vontade em mim.

declaro guerra pela hora da alvorada,
hasteio o branco ao crepúsculo.
ganhar e perder,
morrer e viver,
digam-me o quanto me engano
e tudo o que vem é silêncio,
porque tudo é igual e um engano.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

a boneca de trapos

numa noite terrível, terrível noite de luar,
entre o pó do sótão eu estava a tramar
a derradeira armadilha à minha solidão.
talvez, um dia, os outros entenderão
que, por mais de vinte anos, esperei por ti
e o som da tua voz eu nunca ouvi.
fiz uma boneca de trapos, a partir de velharias —
esquecidas no sótão e já viram melhores dias.

"nunca mais só!", quantas vezes ao ar
eu repeti e repeti até arfar?
instaurou-se uma festa em todo o meu redor
e deliciei-me naquele cenário de horror:
a tempestade arrancava árvores pelas raízes
e o meu coração, carregado de cicatrizes,
ansiava pelo beijo da boneca sem vida,
que me fitava com uma expressão entorpecida.

a noite lá me trouxe um óptimo regalo:
relâmpagos intermitentes num fixo intervalo.
liguei os cabos ao ferro no telhado,
a chuva garantia que estava bem ensopado.
eu pensei e pensei, na minha lúcida demência,
ser capaz de criar uma artificial consciência.
no pescoço da boneca, acrescentei dois pregos,
enquanto me sobrevoava um bando de morcegos.

a corrente eléctrica fluiu do céu até mim
e eu esperneei-me num autêntico vil frenesim.
os sentidos abandonaram-me à própria desgraça
e a razão, por sinal, é também escassa.
o zumbido das palavras exclamadas em vão
desvanece para se tornar nada mais que ilusão.
resta-me a memória daquela boneca que fiz
e sinto que a vida se segura por um triz.

agora sim... finalmente, foi-se tudo!
não só fiquei cego, mas também surdo e mudo.
o sistema nervoso deixou de me responder,
tudo me dói, mas nem me sinto tremer.
desejei ter algo construído à tua imagem
para me conseguir acalmar e dar alguma coragem,
mas a boneca de trapos apenas me enlouqueceu
e tudo o que havia em mim... simplesmente... morreu.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

a minha primeira publicação

não tenho por costume sair de trás da cortina da ribalta, sou mais como o titereiro, a puxar as cordas na sombra e é assim que me sinto confortável. no entanto, acho que este facto merece alguma atenção. nem sei como hei-de catalogar esta mensagem, mas acaba por ser uma história do nosso quotidiano.
um dos contos em verso que escrevi, mais concretamente "o rapaz desmembrado" foi publicado na primeira edição da girazine. sugiro que procurem, na página 21, uma vez que está acompanhado de uma fantástica ilustração do Wilfred Hildonen. a publicação está disponível online e na íntegra aqui.