terça-feira, 31 de março de 2015

às garras da morte

um dia, sonhei poder sonhar mais alto
que os muros se elevam em meu redor,
que as lágrimas que caíram como suor
p'la cara que tanto beijou o asfalto.

um dia, sonhei poder ser um viajante
maior do que os outros que por lá passaram,
maior que os mares que nunca chegaram
às areias das praias de diamante.

é crime p'ra quem ignorou o fado,
que o condenou à dura e pouca sorte,
alcançar o sonho mais bem sonhado.

nem o coração que bate tão forte,
nem as lágrimas de cristo vergado
nos salvam o nome às garras da morte!

segunda-feira, 30 de março de 2015

o mistério da casa da rua amorim — parte I

tudo começou no outro dia, quando acordei sobressaltado com o chegar do correio. a minha vida tinha atingido um ponto tal em que já nada me apanhava de surpresa. além disso, já fazia tempo desde que recebi a minha última correspondência e tão pouco aguardava algo.
a algum custo, lá me levantei para pegar naquele pedaço de papel tão pesado de desgraça. era uma convocatória para dividir as heranças. a minha avó materna morreu. era para estar presente no gabinete do advogado responsável, em três dias.
podem achar que sou frio, insensível ou desprezável. a verdade é que pouco ou nada me afectou aquela notícia. nunca fui próximo da senhora e, portanto, os laços que nos unem são pura e exclusivamente de sangue. sinto-me mais chegado ao gato da vizinha, cuja presença sinto quase diariamente. contudo, lamento a sua partida.
finalmente, chegou o dia do encontro com todos os parentes latentes. como se mostram felizes e contentes por me verem, mas nunca me procuram. não houve espaço para discussões, ainda que não faltasse o ocasional palavrão de alguém que recebeu menos do que o que queria. eu pensei que tinha apenas de marcar presença e acabei por receber a casa da senhora. vou sempre questionar-me porquê, quando havia claramente quem a desejasse mais do que eu.
com os pagamentos a atrasem-se na renda, até que veio mesmo a calhar. a casa da minha avó situa-se na rua amorim. como foram os primeiros a construir lá, foi-lhes permitido escolher o nome da rua e, tratando-se de um grupo de gente um tanto ou nada narcisista, escolheram o nome da família para o devido efeito.
demorei quase um mês a realocar-me por completo e a sentir-me em casa, uma vez mais. entre carregar a tralha toda de um lado para o outro, limpar e inventar onde colocar cada coisa, o tempo passou e eu mal por ele dei. nos interstícios da mudança, lá acrescentava mais umas linhas ao caderno ou umas fotografias ao rolo. devo admitir, contudo, que não andava com grande inspiração.
em algumas semanas, a excitação da casa nova desvaneceu e voltei a sentir-me apático a tudo. com a vantagem de não pagar a renda, veio a outra face da moeda. como manter uma mansão limpa e apresentável? não que eu alguma vez recebesse visitas, mas para mim era importante manter a ordem.
comecei a perder o sono e a levantar-me a meio da noite, para vaguear pela casa. conseguia passar uma hora a bisbilhotar cada recanto, sem nunca repetir a minha passagem. foi num desses passeios nocturnos que reparei nas luzes que vinham do salão principal, no andar de baixo.

quinta-feira, 26 de março de 2015

hoje, estou triste

hoje, estou triste e não sei porquê. passei as horas a olhar imagens de ti e o teu sorriso, sempre presente, nunca esteve tão ausente de mim. não sei se foi a falta do cheiro que deixas comigo ou a alegria que me cravas no coração, como um lembrete a ti própria. todos os dias, assim que acordo, não abro as janelas ao sol. abro o coração a ti e inspiro fundo este ar que é também teu. oh! se soubesses o bom que é lembrar-me de que partilhamos o mesmo planeta, pisamos a mesma terra e beijamos o mesmo mar. quem sabe, um dia, iremos remover o gosto do sal sobre os lábios um do outro. iremos enjoar do sal que nos queima, iremos enjoar do anoitecer que nos arrefece, iremos enjoar da areia que se gruda em nós e do vento que tudo leva. tudo leva, menos nós. o nosso amor está para vir, os beijos são para ficar e a vontade rende-se ao partir. iremos fugir, pé ante pé, com uma mão que une dois braços desejosos de se tornarem um só. iremos ao primeiro esconderijo que encontrarmos e lá, onde o mundo cessa de palpitar e o próprio tempo suspende a respiração, será garantida a permissão para deixar o amor ser amor e seguir o seu rumo descendente. não parará de correr até atingir o afluente que o devolve ao mar. esse mar salgado que, pela manhã, enrola na espuma os segredos da noite passada. ficam, assim, para sempre gravados nos interstícios de mil e uma areias que amanhã já lá não estão. esse mar azul que se recusa reflectir o céu e nos devolve o sal aos lábios, para que possamos ser amantes por mais um dia. hoje, estou triste e já sei porquê. estou triste, porque nunca irás partilhar este sonho comigo.

terça-feira, 24 de março de 2015

desaparecer sem sinal

estar só é mais um estado da alma
do que a falta d'uma ou outra presença,
é estar condenado a uma sentença
e ter de ouvir dizer p'ra se ter calma!

é mais que um grito de loucura imensa,
é rosnar, uivar, chorar p'ró interior,
tentar encontrar conforto p'rá dor
onde não resta a mais mísera crença.

nas grades da gaiola que me prende
correm as lágrimas deste animal
espezinhado — já não se defende.

foste desaparecer sem sinal,
d'uma maneira que ninguém entende,
condenar-me a este estado abismal.

segunda-feira, 23 de março de 2015

as fadas do meu jardim

oiço-as cantar tão perto de mim
essa vertiginosa melodia
e vejo-as dançar no meu jardim,
como se fossem truque de magia.

sinto-as como cócegas nos pés,
conto-lhes as peripécias do dia,
salto, corro, rio, brinco c'oas marés
em que me inundam de pura alegria!

são visões... bem sei não serem reais —
são acima da soma dos teus sinais!
oh! se me pudesse livrar ao encanto...

jamais encontrarei outras como elas
que, de entre as fadas, eram as mais belas
e o amor que me davam era tanto!

domingo, 22 de março de 2015

maria inês

esse nome... teu belo nome, inês!
não há outro tão belo, sem igual,
em quaisquer das terras de portugal
ou c'oa a perfeição com que deus te fez.

esse nome, repetido ao expoente
da loucura, como se uma vil doença
cravasse no meu peito esta sentença
de viver em tristeza permanente.

se o que posso fazer é nada mais —
é clamar ao céu que tanto me goza
p'la falta de força nos meus umbrais...

p'ra louvar teu nome não basta a prosa
do lago verde nos olhos divinais
que fazem de ti, inês, a mais formosa!

sexta-feira, 20 de março de 2015

para ti, querida Florbela

maldito o fado que te condenou
sofrer tanto que ousaste lançar
bênçãos aos homens que querias amar
c'o coração que nenhum outro amou.

maldito seja o beijo da tua boca,
maldita seja a morte que te tem,
maldita a sorte que é minha também,
te rompeu c'os joelhos e deixou louca!

maldita seja a canção estonteante
que só tu decifras nesta nossa arte
e mais não é do que um frémito instante.

e os lábios que não conseguem calar-te
são meus, quando me imponho teu amante
c'os beijos que nunca poderei dar-te...

quinta-feira, 19 de março de 2015

o teu primeiro amor

não contas as casas, p'la rua, sem tecto,
não contas os dias em que estás feliz,
nem sabes o que passa ou se diz,
se vives na sombra do meu afecto.

tens e terás, em mim, fiel companheiro,
quando os muros, por fim, se derrocarem
e os teus olhos de cetim me abonarem —
mais do que um sim, quero-te por inteiro.

só te lembra contar gotas perdidas,
por entre os dias de orvalho e de nevoeiro,
em que passas os dedos nas feridas.

e o meu amor que, de tão verdadeiro,
curou todas as tuas lascas partidas,
nunca superou esse teu primeiro.

terça-feira, 17 de março de 2015

o homem da casa no fundo da rua

olho para o céu e vejo
estrelas a brilhar no escuro,
a guardar secreto o desejo
de amar com amor mais puro.

sou um contador de histórias
e conto-as como as vejo,
como me falam as memórias
que em ferocidade protejo.

conta-se: ao fundo desta rua,
morava um estranho rapaz
e aquela casa só sua
descansa, agora, em paz.

se te tornas desaparecido,
ninguém te nota o corpo frio,
ma se perdes alguém querido,
o mundo inteiro vai vazio.

entre tanto tédio, lá decidi
visitar a despovoada casa,
como quem não sabe de si
e seus compromissos atrasa.

mas só a caminho me lembrei,
que nem seu nome eu sabia,
então, um p'ra ele inventei
e estava certo! quem diria?

Benjamim Faria era tímido
e de pouca alegria na vida,
dormia num quarto húmido
e cedo teve a sorte tecida.

capaz de amar sem precedentes,
amou cada amor sem igual,
e, se lhe eram descontentes,
ele nunca os viu como tal.

ainda a semana ia a meio,
era uma quarta-feira, talvez,
quando, no posto de correio,
ele a viu p'la primeira vez.

a primeira jamais se esquece,
num só olhar, o tempo pára,
num sorriso, o chão estremece...
oh! se lhe pudesse tocar a cara...

e a carta destinada à outra,
esse amor já sem resposta,
que lhe fez a alma neutra,
não chega a quem não gosta.

"esta noite não sossego!
fui enfeitiçado novamente...
deixei cravar esse prego
no coração que nada sente!"

era Benjamim sem dormir
que, temendo o seu destino,
não se impedia de sorrir
como se ainda fosse menino.

os dias viraram semanas
e em cada um, ele lá voltou,
espreitando p'las persianas,
pacientemente aguardou...

mas nunca mais a viu —
dizem que até chorou!
quando a lágrima caiu,
foi ele quem se despenhou.

jurou guerra ao amor
e destruir os seus afluentes,
porque num mundo de dor,
sofrem os ainda crentes.

e eis que num qualquer dia,
já tão cheio e cheio de nada,
reparou que alguém lhe sorria
leve e doce p'la madrugada.

a brisa descobriu o olhar,
quando lhe levou o cabelo
p'ra que pudessem encontrar
o momento e não perdê-lo.

foi faísca que assim se fez,
com labaredas ao destino,
eram eles Pedro e Inês —
e até já se ouvia o hino!

quão generoso é o fado?
quando se julgava perdido,
ei-lo, de novo, encontrado,
eis a razão, eis o sentido!

"ó aflicção que partiste
para terras de nunca mais,
trago essa dor que persiste
p'las marcas ancestrais!"

"ó confortável vazio cheio,
repleto de tanto nada,
nada mais que o receio
de perder a bela amada!"

era ela, seu nome Benedita,
donzela p'ra acalmar o medo,
calar a voz que tanto grita
Benjamim em seu segredo!

o amor não teve limite,
a paixão foi digna de se ver,
como quem não o permite
e acaba por se render.

ela amou — fingiu ter amado —
a alma que por tanto passou,
o coração demais cansado
que a flecha não magoou.

houve gritos? eu não ouvi.
maldade? não dei por ela,
mas eu sei e digo a ti:
"nunca houve outra donzela."

não me hás-de acreditar,
conheces-me de lado algum,
sabes... só estou a narrar
um conto demais comum.

Benedita, foste embora —
desapareceste sem rasto?
se falasses em boa hora
que o coração estava gasto...

o rapaz ainda guarda
a carta que nunca enviou,
aquela lágrima que tarda
e nunca antes derramou.

a fotografia na moldura —
era a tua imagem por inteiro —
havia lá tanta ternura
e, quiçá, amor derradeiro!

desse amor já nada resta
que seja digno de se mostrar,
é um quadrado sem aresta,
é um círculo por revelar.

"que faço eu com a solidão,
este abandono ao injusto?
quis entrar nesse coração,
fechado a tanto custo!"

"que digas já, em verdade,
onde foi, onde eu errei?
temo ceder à insanidade...
e se fui eu que falhei?"

"ainda espero o vazio,
que eu sei ser nada mais
que um lugar escuro e frio,
opaco aos teus sinais."

"a cortina cessa em mim,
tudo pára, o herói morreu...
já não sei porque vim
a este velório só meu!"

e assim se foi a chama
do fogo que nunca ardeu,
como quem tanto ama
esse amor que não é seu.

sonho prematuro que era
sol de pouca dura e ruiu
a curta aventura, primavera —
o futuro que nunca viu!

eras criança, foste cobaia
desta experiência amorosa,
como uma areia na praia
que, se pequena, é numerosa.

estas paredes, teu espelho —
feias, gastas, demais sofridas —
foste sujar teu joelho
com fissuras tão antigas!

o tempo foge entre os dedos,
as palavras faltam às linhas,
vivo fantasmas, sinto medos —
as tuas fantasias são minhas!

e, em mim, agora grita
aquela voz que desapareceu,
nessa imagem se acredita
que esse homem era eu...

"ó cruel, impietoso destino,
que me foste tu fazer?
eu queria era ser menino
e tanto fiz por me esquecer!"

"eu sou Benjamim Faria...
não me lembrava tal mágoa,
tal tristeza, esta agonia
e falta d'ar fora d'água!"

"estas paredes antes minhas,
minha cama, nosso leito:
andei p'las curvas que tinhas
e repousaste no meu peito..."

"ó crueldade, ó subversão,
não te guardo qualquer rancor!
sente e mostra compaixão
por este pobre narrador..."

assim foi a minha história
de pouca sorte com o fado
e guardo aqui a memória
de não se querer encontrado.

segunda-feira, 16 de março de 2015

um breve instante

respiro na sombra de uma ilusão,
cansado em demasia p'ra me mover,
p'ra sentir o ar ou p'ra tentar viver
entre esta perpétua escuridão.

sentir o que sinto só por sentir
é, no firmamento por estrelar,
o fundo do teu vácuo a clamar
p'lo meu nome quando vou desistir.

vem, na lembrança de mágoas passadas,
o doloroso palpitar constante,
no meu peito, negar as madrugadas.

fui eu, de entre os homens, tão mau amante
que, nem das tuas lágrimas mal choradas,
me achaste digno por um breve instante?

domingo, 15 de março de 2015

sonho de infância

a noite carrega-me feito criança,
que antes de ti fui e nunca mais,
essa que ainda vive a esperança
e as saudades dos teus gestos banais.

se fosse, um dia, esse mar de lembrança,
eu banhar-te-ia como o faz à costa,
porque se é p'ra se empunhar uma aliança
há que provar que realmente se gosta.

bem sabes... não foi por esquecimento,
talvez falta de tempo, ignorância...
falta de olhos num coração atento!

quando já só resta a última instância,
vagueio a noite em claro, ao relento
ainda a viver o meu sonho de infância...

terça-feira, 10 de março de 2015

amar-me-ias mais?

amar-me-ias mais, se te desse menos?
amar-me-ias mais, se te fosse cruel?
amar-me-ias mais, se roubasse o mel
com que fazes os teus doces venenos?

amar-te é, certamente, por loucura,
ter-te é livre-trânsito p'rá prisão,
fui eu culpado, mas não fui ladrão —
eu levar-te-ia mais que só ternura.

o sol, em mim, tanto faz, tudo cura,
tudo banha, ilumina sem cansaço,
tarda nesta noite que tanto dura.

vazou o meu amor, ficou escasso
p'ra te proteger dessa queimadura
de alguém que não faz por ti o que eu faço.

domingo, 8 de março de 2015

em memórias, refém

não és uma, não és duas — és alguém
que sabe que o que vai no pensamento,
se se evade à crueldade do momento,
fica p'ra sempre, em memórias, refém.

mulher! p'ra que queres tanta garganta?
se é quando tens que falar que te calas,
se é quando tens que ouvir que tu falas
e abandonas-me a alma pura e santa!

eu só peço: aproxima a tua ausência,
faz encher, em mim, mares de saudade
que naveguei sob um véu de inocência.

se é crua, se é dura, mas se é realidade,
porque ligas tu tanto à aparência
daquilo que é mentira, na verdade?