segunda-feira, 30 de março de 2015

o mistério da casa da rua amorim — parte I

tudo começou no outro dia, quando acordei sobressaltado com o chegar do correio. a minha vida tinha atingido um ponto tal em que já nada me apanhava de surpresa. além disso, já fazia tempo desde que recebi a minha última correspondência e tão pouco aguardava algo.
a algum custo, lá me levantei para pegar naquele pedaço de papel tão pesado de desgraça. era uma convocatória para dividir as heranças. a minha avó materna morreu. era para estar presente no gabinete do advogado responsável, em três dias.
podem achar que sou frio, insensível ou desprezável. a verdade é que pouco ou nada me afectou aquela notícia. nunca fui próximo da senhora e, portanto, os laços que nos unem são pura e exclusivamente de sangue. sinto-me mais chegado ao gato da vizinha, cuja presença sinto quase diariamente. contudo, lamento a sua partida.
finalmente, chegou o dia do encontro com todos os parentes latentes. como se mostram felizes e contentes por me verem, mas nunca me procuram. não houve espaço para discussões, ainda que não faltasse o ocasional palavrão de alguém que recebeu menos do que o que queria. eu pensei que tinha apenas de marcar presença e acabei por receber a casa da senhora. vou sempre questionar-me porquê, quando havia claramente quem a desejasse mais do que eu.
com os pagamentos a atrasem-se na renda, até que veio mesmo a calhar. a casa da minha avó situa-se na rua amorim. como foram os primeiros a construir lá, foi-lhes permitido escolher o nome da rua e, tratando-se de um grupo de gente um tanto ou nada narcisista, escolheram o nome da família para o devido efeito.
demorei quase um mês a realocar-me por completo e a sentir-me em casa, uma vez mais. entre carregar a tralha toda de um lado para o outro, limpar e inventar onde colocar cada coisa, o tempo passou e eu mal por ele dei. nos interstícios da mudança, lá acrescentava mais umas linhas ao caderno ou umas fotografias ao rolo. devo admitir, contudo, que não andava com grande inspiração.
em algumas semanas, a excitação da casa nova desvaneceu e voltei a sentir-me apático a tudo. com a vantagem de não pagar a renda, veio a outra face da moeda. como manter uma mansão limpa e apresentável? não que eu alguma vez recebesse visitas, mas para mim era importante manter a ordem.
comecei a perder o sono e a levantar-me a meio da noite, para vaguear pela casa. conseguia passar uma hora a bisbilhotar cada recanto, sem nunca repetir a minha passagem. foi num desses passeios nocturnos que reparei nas luzes que vinham do salão principal, no andar de baixo.