terça-feira, 17 de março de 2015

o homem da casa no fundo da rua

olho para o céu e vejo
estrelas a brilhar no escuro,
a guardar secreto o desejo
de amar com amor mais puro.

sou um contador de histórias
e conto-as como as vejo,
como me falam as memórias
que em ferocidade protejo.

conta-se: ao fundo desta rua,
morava um estranho rapaz
e aquela casa só sua
descansa, agora, em paz.

se te tornas desaparecido,
ninguém te nota o corpo frio,
ma se perdes alguém querido,
o mundo inteiro vai vazio.

entre tanto tédio, lá decidi
visitar a despovoada casa,
como quem não sabe de si
e seus compromissos atrasa.

mas só a caminho me lembrei,
que nem seu nome eu sabia,
então, um p'ra ele inventei
e estava certo! quem diria?

Benjamim Faria era tímido
e de pouca alegria na vida,
dormia num quarto húmido
e cedo teve a sorte tecida.

capaz de amar sem precedentes,
amou cada amor sem igual,
e, se lhe eram descontentes,
ele nunca os viu como tal.

ainda a semana ia a meio,
era uma quarta-feira, talvez,
quando, no posto de correio,
ele a viu p'la primeira vez.

a primeira jamais se esquece,
num só olhar, o tempo pára,
num sorriso, o chão estremece...
oh! se lhe pudesse tocar a cara...

e a carta destinada à outra,
esse amor já sem resposta,
que lhe fez a alma neutra,
não chega a quem não gosta.

"esta noite não sossego!
fui enfeitiçado novamente...
deixei cravar esse prego
no coração que nada sente!"

era Benjamim sem dormir
que, temendo o seu destino,
não se impedia de sorrir
como se ainda fosse menino.

os dias viraram semanas
e em cada um, ele lá voltou,
espreitando p'las persianas,
pacientemente aguardou...

mas nunca mais a viu —
dizem que até chorou!
quando a lágrima caiu,
foi ele quem se despenhou.

jurou guerra ao amor
e destruir os seus afluentes,
porque num mundo de dor,
sofrem os ainda crentes.

e eis que num qualquer dia,
já tão cheio e cheio de nada,
reparou que alguém lhe sorria
leve e doce p'la madrugada.

a brisa descobriu o olhar,
quando lhe levou o cabelo
p'ra que pudessem encontrar
o momento e não perdê-lo.

foi faísca que assim se fez,
com labaredas ao destino,
eram eles Pedro e Inês —
e até já se ouvia o hino!

quão generoso é o fado?
quando se julgava perdido,
ei-lo, de novo, encontrado,
eis a razão, eis o sentido!

"ó aflicção que partiste
para terras de nunca mais,
trago essa dor que persiste
p'las marcas ancestrais!"

"ó confortável vazio cheio,
repleto de tanto nada,
nada mais que o receio
de perder a bela amada!"

era ela, seu nome Benedita,
donzela p'ra acalmar o medo,
calar a voz que tanto grita
Benjamim em seu segredo!

o amor não teve limite,
a paixão foi digna de se ver,
como quem não o permite
e acaba por se render.

ela amou — fingiu ter amado —
a alma que por tanto passou,
o coração demais cansado
que a flecha não magoou.

houve gritos? eu não ouvi.
maldade? não dei por ela,
mas eu sei e digo a ti:
"nunca houve outra donzela."

não me hás-de acreditar,
conheces-me de lado algum,
sabes... só estou a narrar
um conto demais comum.

Benedita, foste embora —
desapareceste sem rasto?
se falasses em boa hora
que o coração estava gasto...

o rapaz ainda guarda
a carta que nunca enviou,
aquela lágrima que tarda
e nunca antes derramou.

a fotografia na moldura —
era a tua imagem por inteiro —
havia lá tanta ternura
e, quiçá, amor derradeiro!

desse amor já nada resta
que seja digno de se mostrar,
é um quadrado sem aresta,
é um círculo por revelar.

"que faço eu com a solidão,
este abandono ao injusto?
quis entrar nesse coração,
fechado a tanto custo!"

"que digas já, em verdade,
onde foi, onde eu errei?
temo ceder à insanidade...
e se fui eu que falhei?"

"ainda espero o vazio,
que eu sei ser nada mais
que um lugar escuro e frio,
opaco aos teus sinais."

"a cortina cessa em mim,
tudo pára, o herói morreu...
já não sei porque vim
a este velório só meu!"

e assim se foi a chama
do fogo que nunca ardeu,
como quem tanto ama
esse amor que não é seu.

sonho prematuro que era
sol de pouca dura e ruiu
a curta aventura, primavera —
o futuro que nunca viu!

eras criança, foste cobaia
desta experiência amorosa,
como uma areia na praia
que, se pequena, é numerosa.

estas paredes, teu espelho —
feias, gastas, demais sofridas —
foste sujar teu joelho
com fissuras tão antigas!

o tempo foge entre os dedos,
as palavras faltam às linhas,
vivo fantasmas, sinto medos —
as tuas fantasias são minhas!

e, em mim, agora grita
aquela voz que desapareceu,
nessa imagem se acredita
que esse homem era eu...

"ó cruel, impietoso destino,
que me foste tu fazer?
eu queria era ser menino
e tanto fiz por me esquecer!"

"eu sou Benjamim Faria...
não me lembrava tal mágoa,
tal tristeza, esta agonia
e falta d'ar fora d'água!"

"estas paredes antes minhas,
minha cama, nosso leito:
andei p'las curvas que tinhas
e repousaste no meu peito..."

"ó crueldade, ó subversão,
não te guardo qualquer rancor!
sente e mostra compaixão
por este pobre narrador..."

assim foi a minha história
de pouca sorte com o fado
e guardo aqui a memória
de não se querer encontrado.