algures no mundo, um rapaz não conseguia dormir. pensou para si mesmo "vou escrever uma história sobre um outro rapaz que também não consiga dormir e, talvez, isso me traga algum cansaço merecido."
terminou de escrever o primeiro parágrafo, quando ouviu um ruído na janela do seu quarto. não deu para perceber o que era, de tão rápido que foi, mas chamou-lhe a atenção. nesse momento, parou de escrever e olhou atentamente em seu redor. tudo estava calmo e nada parecia suspeito. a escrita prosseguiu.
não foi preciso mais do que outro parágrafo e o estranho ranger à janela voltou a distraí-lo. o rapaz que não tinha sono, estava a ficar inquieto e nada parecia estar a ajudar. levantou-se, decidido a descobrir a fonte da sua perturbação. abriu a persiana e depois a janela e o que viu alterou a direcção do seu destino. era um pequeno corvo que debicava na sua janela.
o rapaz deixou o pássaro entrar no seu quarto. a pequena ave deu duas voltas em torno do candeeiro e deixou cair um pedaço de papel, antes de se empoleirar em cima do guarda-fatos. não há falta de emoções, agora é a vez da curiosidade. desembrulhou o emaranhado de papel e descobriu uma mensagem, escrita com uma letra cuidada e bonita — era uma mensagem de alguma rapariga, sem dúvida!
"desde o primeiro instante em que abandonaste o lugar ao meu lado, não houve um outro em que não me tenhas invadido a memória com a fúria de um tufão. sei que não aguentas muito daquilo que sou e pela milésima vez imploro o teu perdão. apercebi-me que uma vida sem ti é uma vida desperdiçada. por mais que tente fugir, as tuas memórias acabam por me apanhar. imagina a terra que anseia a chuva do outono após um verão abrasador. responde-me, é fácil para ti esqueceres tudo de mim?"
um silêncio de morte invadiu o coração do pobre rapaz que pensava ser impossível haver maior silêncio do que aquele que importunava o seu sono. não foi capaz de ignorar o apelo da pobre rapariga e escreveu-lhe uma mensagem de volta, fazendo-se passar pelo seu amante.
o truque funcionou, talvez a felicidade de poder ignorar o abandono a tenha cegado, mas nunca desconfiou que não se tratava do seu amor. era apenas um outro rapaz, um rapaz que nada tinha para fazer à noite além de esperar o sono. as suas noites continuaram em claro e o pássaro de negro continuou a transportar mensagens para trás e para a frente.
o rapaz sem sono apaixonou-se e a rapariga recuperou o amor que se havia perdido nos recantos esquecidos do seu coração. um dia, o rapaz pediu para se encontrarem. ia revelar a verdade, pois não conseguia mais viver sem o toque físico daquela pessoa que o havia mantido acordado tantas horas a fio. a rapariga ansiava tal pedido, mas nunca tomou iniciativa por medo de mais uma rejeição.
o dia chegou e o rapaz não pregou olho a noite inteira, chegou duas horas adiantado e o seu coração acelerava sem limite, contra as próprias leis da natureza! ninguém sabe ao certo o que aconteceu, quando ela chegou. formaram-se mitos e lendas em torno desse evento, mas eu vou partilhar aquele que eu sinto ser a versão mais próxima da verdade.
a rapariga chegou e procurou o seu amante. não o encontrou, apenas estava presente um rapaz de cabelo despenteado e com umas olheiras do tamanho do mundo. ele contou-lhe toda a verdade, desde a primeira noite em que o corvo o visitou. contra tudo o que ele esperava, a rapariga sentiu-se enganada e não aguentou a dor de um coração novamente quebrado. correu para a berma da ponte que une as margens do rio e atirou-se contra o fundo rochoso.
o rapaz ficou chocado com o que viu. não só rebentou o seu coração, como a culpa que sentia no destino da rapariga o consumiu como uma labareda infernal e também ele se jogou ao encontro da morte.