segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

contra a corrente

o vento assobia-me o teu nome,
é gelo nos meus ouvidos,
mas eu corro, apesar da fome,
em oposição aos sentidos.

a lua um percurso ilumina,
eu o conheço de coração,
e tudo o que por lá caminha
é gente sem salvação.

ervas cortam-me as extremidades,
cobri tudo o que fui capaz,
mas há vis calamidades
que não lembram a um rapaz.

só mais um passo moribundo,
chegar onde mais não quero,
o único lugar no mundo
onde morro, porque espero.

há um arrepio preso em mim,
percorre-me a espinha e a alma,
sente próximo o fim
do coração que não se acalma.

e digo que tudo valeu a pena,
experimentar ser desordeiro,
saciar o pulsante dilema
que me corrói por inteiro.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

três vezes teu nome “leonor!”

analisava uma amostra de sangue, sem me lembrar como chegou ali – às minhas mãos. foi então que me apercebi, quando espreitei pela janela do laboratório. a noite surgiu como o eco de uma pedra a atingir o fundo de um poço. gritei três vezes o teu nome “leonor! leonor! leonor!” e três vezes ecoou pelos adormecidos corredores do hospital psiquiátrico. desejei descobrir os teus íntimos segredos, ao nível das tuas ínfimas moléculas. estavas tão feliz por conseguires ser nada mais do que isso, que o meu ciúme temia tratar-se de outro homem. num segundo respiravas, no outro não.

sábado, 17 de dezembro de 2011

palavras que escrevo

não sei porque escrevo
ou o que escrevo,
só sei é que o faço
e faço-o porque me atrevo!
não falta o lápis e o papel,
leite quente e um pouco de mel,
o inverno frio sem luar,
um triste pintor sem pincel.
não falta tema, por mais mundano
que seja esse reles quotidiano,
a vida da criatura mesquinha
que apelidaram de "ser humano".
não há-de passar o dia
sem notícia de alguma euforia,
uma tragédia ou uma morte
para a caneta ficar vazia.

gosto de juntar palavras,
gerar padrões, repetições e ilusões!
há quem o faça com arte
e fá-lo bem por toda a parte!
mas também tem muito jeito
a total falta de sensatez,
quando toda a ilucidez
jorra do vazio do peito.

sábado, 10 de dezembro de 2011

o último dia

viu partir o último passageiro e trancou a porta. calmamente, levantou-se da sua posição de comando e caminhou em direcção aos lugares remotos que se escondem no fundo. sentou-se como os restantes, hoje não é mais o condutor. o ponteiro do relógio aponta para um duplo dueto, as horas contam-se em vinte. suspirou e, ao levar as mãos à cabeça, começou a chorar. não como um bebé, mas como uma estátua num dia chuvoso. vislumbrou toda uma vida repleta de gente, sempre a entrar e a sair, na máscara de um volante. todas essas vidas descritas pelas funções posição-tempo que se intersectaram com a sua por alguns instantes. lembra-se de cada conversa escutada: as discussões, os festejos, desabafos e medos. ainda que as estradas fossem sempre pintadas de igual, havia, em cada novo dia, algo de peculiar à espera de ser descoberto. a ténue repetição das sirenes torna-se intensa. aproximam-se montados em cavalos bravos, com as tochas e os machados em punho exigindo sangue do seu. com toda a razão, ele os espera. desta vez o destino foi outro, para lá das portas da morte. uma harmonia melancólica surge pé-ante-pé, mal se faz notar, e gradualmente inunda aquele enrugado coração da mais salgada tristeza. só há uma forma de se reconciliar consigo, expurgar o veneno da cobardia que o assola. a saída será grandiosa, barulhenta e mediática. para sempre se hão-de lembrar do nome que vergonhosamente desconhece, da expressão que vira apenas marcada pelo terror. a pequena rapariga, cuja alma entrou no seu autocarro demasiado cedo e cujo corpo se esqueceu na valeta embebido em sangue, merece um perdão nas páginas da história. por fim o encontram, apaticamente a aguardar os condecorados vigilantes da sociedade que juraram proteger os indefesos e injustiçados, barricado no fundo daquele veículo que foi para ele mais do que uma segunda casa. levantou-se com o som das janelas a partir e vislumbrou os estilhaços a voar na sua direcção. fechou os olhos e imaginou gotas do mar, expelidas pelas ondas que se destroem ao embater na areia em torno dos seus pés. o fim é luminoso, estrondoso, um autêntico épico. agora jaz também ele no chão que acaricia suavemente, agarrando-se aos últimos segundos em contagem regressiva. tudo foi o que devia ter sido.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

o medo

o medo tinha tanto medo
que um dia se perdeu,
tremeu de tédio, ódio e frio,
de medo que não era seu.

aventurou-se corajoso,
como se medo não fosse,
mas o mais curioso
foi o medo que medo trouxe.

com relâmpagos fortes chovia
e o medo a medo se entranhava,
entoado a infame melodia
do medo que de dentro arranhava.

foge, foge medo, foge
antes que a esperança te apanhe!
não haverá um outro hoje,
e o medo que se acanhe!

na janela para o rio a ver
todo aquele medo a fluir,
como que prestes a acontecer
o medo de tornar a sentir.

são as palavras vagas dos avós
que seguram o medo ao mundo,
quando os homens que estão sós
vivem com o medo a tudo.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

apenas isto e nada mais

o dia era uma dualidade de sabores, gélido na penumbra e caloroso perante os escassos raios de sol. sentei-me na sombra a fitar o infinito, como se o pudesse, de facto, enxergar. pensei em mil assuntos diferentes e nas respostas a que a todos dar. franzi as sobrancelhas, pois a radiação era, ainda assim, demasiado intensa para mim. nem a escuridão a permite suportar. ela veio, intrigada, até mim e sem "olá" me quis assim inquirir "não está frio, neste lugar onde estás?" e eu gentilmente retorqui "não tanto quanto no meu coração, onde ainda flui para dentro de mim algum calor desta frígida região." no entanto, tal não foi o suficiente para apaziguar a sua inquietude e ela continuou "o que fazes tão só e estático a admirar o eterno vazio?" ao ouvir estas palavras, só consegui admitir "esperava este momento, em que vinhas ter comigo."

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

o buraco cresce

a noite não tarda para o homem sem sono,
ou para aquele que de si já não é dono.
como a boca da gorda mulher que tudo engole,
assim é o buraco que cresce no tecido mole.
anoitece no mundo que te pertenceu um dia,
onde olham para trás e questionam "quem diria?"
apetece arrancar essa carne que tanto satisfaz,
nos ousados sonhos em que se é mais audaz.
a melodia que esboçam teus cabelos no vento,
corrói a essência das palavras que vêm de dentro.
quem foi que te encontrou só para te devolver,
ao lado do homem morto que o é sem o saber?
silêncio - já te perdeste uma vez sem voltar,
a escuridão apagou o teu infame brilho luar.
já não bate o relógio da indeterminada espera,
és uma presa indefesa entre os dentes da fera.
salta as paredes da morte num feixe de luz,
o teu charme de outrora já não seduz.
o buraco cresce e tu dormes na margem,
viver já não detém qualquer vantagem.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

o rapaz com o casaco de metal — capítulo IV: morte ao herói

anabela foi a primeira a acusar benjamim. alguém capaz de se separar do seu bem mais precioso, sem importar às consequências, mais ainda o seria de fazer a outros - por quem não nutre qualquer emoção. benjamim ouviu tais palavras pela grosseira voz de um polícia, aquando da sua detenção preventiva. de facto, não havia uma alma que não apontasse o dedo, com a certeza que a autoria dos consecutivos mórbidos crimes pertencia a mais ninguém do que o estranho rapaz do casaco de metal. os seus pais depuseram contra ele. assim o fizeram todos os que o conheciam directa ou indirectamente, desde os vizinhos, professores, colegas até aos próprios avós. como sempre se revelou um rapaz peculiar, fora do normal e emaranhado em atitudes obscuras, ninguém sofreu de surpresa pelas acusações que se abateram sobre ele. temiam a sua excentricidade, desde o momento em que começou a usar o seu fantástico casaco. não compreendiam a sua genialidade, nem o professor de matemática - que era doutorado. na verdade, benjamim era - e sempre o foi - um rapaz bastante humilde, honesto e bom. pode dizer-se que a fatalidade do seu destino se relaciona directamente com a bondade e ingenuidade que residiam no seu coração. pairava sobre a comunidade a pergunta "como foi capaz de remover o próprio coração?" e benjamim intrigava-se sobre "como nunca o foram eles, que proclamam amar cônjuges, familiares e amigos, capazes de ofertar a palpitação tangível desse amor?". as palavras significam o vácuo do universo, sem acções que as materializem - ele acreditava. sobre a sua imputação de culpa, nunca teceu qualquer comentário. os interrogatórios eram preenchidos por berros unilaterais e monótonos monólogos policiais. benjamim extrapolava-se para longe do seu corpo e observava todo o circo que o rodeava. chegou a achar tal situação bastante divertida, por vezes. a comunidade reuniu-se de emergência, face ao elevado número de corações em falta. condenaram-no bem antes de se iniciar qualquer discussão. a sentença era nada mais do que a própria vida. um dos guardas encarregues da vigia sobre benjamim participou em tal agregação. a revelação da sua condição de falso coração pela anabela selou a sequência dos acontecimentos que se seguiram. não decorreram duas noites e, pela calada da noite - nunca se descobriu quem, mas toda a gente sabia bem - alguém se aproximou de benjamim enquanto descansava. dormia e nem se apercebeu que lhe desligavam o coração. pensavam ter erradicado o monstro, mas os corpos continuaram a surgir e os corações a faltar. benjamim permanece, para a eternidade, culpado do crime de amar além das fronteiras do homem, fora do alcance da compreensão humana.

sábado, 1 de outubro de 2011

a promessa que ela fez

estava parado na fila
a aguardar a minha vez,
nesta cabeça se repetia
a promessa que ela fez.

as palavras tontas
que não ousamos partilhar,
são disparadas à toa
de olhar para olhar.

hoje se conta um ano,
à meia-noite e três,
ouvi num ténue sussurro
a promessa que ela fez.

no dia em que não dormi,
ou quis saber os "porquês",
surgia a ranger no peito
a promessa que ela fez.

desapareceu sem rasto
uma palavra em português.
ela nunca chegou a cumprir
aquela promessa que fez,
(mas eu ainda espero
a promessa que ela fez).

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

o mal da alegria

existe uma razão
(uma muito boa razão, eu diria)
para todo o coração
que sofra do mal da alegria!

a vontade de dar tudo
(tudo por tudo, até ao infinito)
na voz que fala mudo
a confissão de um só grito!

desistir sabe melhor
(desistir é honrado, também)
quando há falta de amor
na presença de alguém.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

o político insensato

prometo jamais ser contente
até o ser novamente!
ripostar com os dentes
de maneiras diferentes.
prometo largar a tristeza
no intervalo da felicidade!
até ter a certeza
da morte por saudade.
prometo ser escravo
quando mo derem por opção!
quando as noites forem claras
como os dias em que estão.
prometo voltar a amar,
quando amar for seguro!
o coração é um palco
onde já não figuro.
prometo vir a temer
o perder antes do perder!
o medo de encontrar
nada mais do que mero ar.
prometo sentir-te
pelo puro prazer de sentir!
essa tua paixão
é um continuar a mentir.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

troquei o nome para não saberes

"querida benedita" começa
a informal e típica carta,
mas daquilo que é igual
já bem estarás tu farta.

perdoa-me a demência,
a arrogância e a ousadia.
aqui encontro a coragem
que naturalmente não teria.

já antes das histórias
me causas certo tormento,
a única estrela viva
no frio do pensamento.

os teus olhos castanhos,
esse bom cheiro aromático,
um tic-tac do relógio
e o sorriso mais simpático.

os dias envoltos em silêncio,
irrefutável prova são
daquelas vontades contidas
a que chamam devoção.

horas e horas e horas,
oito dias por semana.
pode parecer interminável,
mas a aparência engana.

tu caminhas sobre música,
uma melodia em tom de si.
se as notas falassem diriam:
és a mais bela mulher que vi.

o meu desejo era cantar-to
com um musical no rivoli,
mas a verdade é só uma:
perdi o coração em ti.

sem mais atrasar o adeus,
isto apenas tenho a dizer:
se algo partilhas comigo,
fá-lo antes do amanhecer.

vem pela calada da noite,
não me temas massacrar,
se o destino deste coração
for o cruel vazio do mar.

sábado, 24 de setembro de 2011

o rapaz com o casaco de metal — capítulo III: o coração num frasco de vidro

não há aulas depois das quatro da tarde e pouca gente gosta de ir para casa antes das seis. benjamim preferia ficar pelo largo do cruzeiro a observar desavergonhadamente a anabela. escrevia compulsivamente no seu caderno de bolso as equações que pensava descreverem a beleza daquela rapariga que se sentava no mesmo banco de jardim - em frente do seu - todas as tardes a desenhar. quando as aulas terminavam, anabela colocava um vazio frasco de compota em cima do muro. todos os dias, esse frasco continha algo diferente para ela desenhar. por vezes eram flores e insectos, outras tantas eram apenas os mais diversos objectos inanimados. o caderno de benjamim era um registo minucioso de tudo o que ela já pousou no muro e desenhou, dentro daquele vazio frasco de compota. o amor é coisa dos pobres, burros e ignorantes! não é e nunca foi algo indicado para alguém com o complexo intelecto de benjamim. é, certamente, o único conceito em todo o universo que nunca entendeu. por essa razão, ia todos os dias descrever matematicamente anabela a desenhar no largo. através das suas cuidadas observações, concluiu estar apaixonado. comparou exaustivamente com o que havia aprendido e pensava ser o amor dos seus pais, vizinhos e colegas da escola. leu os grandes romances da literatura clássica e identificou todos os padrões de sintomas. só faltava conquistar a anabela. quis impressioná-la com o acto que os maiores românticos da história apenas conseguiram sonhar em fazer, sem jamais se terem aproximado de qualquer tipo de sucesso. esses homens que inspiram os de hoje e criam expectativas nas mulheres nunca passaram das palavras nos poemas ou das imagens nas telas. uma semana passou benjamim recluso no seu quarto, envolto nas suas experiências. finalmente conseguiu! os grandes amantes do passado invejá-lo-iam e histórias do seu grande feito de amor seriam contadas e cantadas durante as gerações vindouras. iluminaria todas as paixões futuras! confiante, benjamim regressou ao largo no dia seguinte. dirigiu-se ao banco onde se sentava anabela e pediu-lhe o seu vazio frasco de compota. prometeu trazer-lhe algo maravilhoso, que nunca se vira antes, só para ela desenhar. a rapariga estranhou o peculiar pedido, mas concordou. a sua curiosidade fora espicaçada! que objecto do mundo do fantástico teria benjamim preparado para si? o momento chegou. benjamim pediu que cerrasse os olhos. anabela assim o fez, empolgada com a surpresa. em cima do muro, o seu vazio frasco de compota foi colocado. com a permissão de benjamim, abriu os olhos. empalideceu! o sangue fugiu-lhe da cara, por momentos, antes de ter forças para gritar em terror. assim que retomou controlo dos sentidos, desapareceu a correr. do translúcido frasco escorriam as gotas de sangue de benjamim. estas dançavam em torno do seu coração, que ainda batia vigorosamente e o som característico que emitia "tum-tum, tum-tum, tum-tum". benjamim arrancara-o do próprio peito com tal arte que se manteve palpitante! no lugar que restou entre os pulmões, colocou um substituto biónico - desprovido de emoção humana. talvez seja essa a razão porque benjamim nunca compreendeu a reacção que teve anabela perante a maior declaração de amor a que este mundo alguma vez assistiu. esperava promessas de paixão e devoção eternas, reconhecimento por parte dos demais. foi então, nesse momento, que,  preso naquelas paredes de vidro, desistiu de bater o coração de benjamim. assim surgiu a sua obsessão em desvendar a teoria que rege o amor. a perpétua busca pela solução de uma equação imaginária, que só existia na sua cabeça. os jornais que se seguiram começavam com as manchetes sobre um novo assassino em série que arrancava os corações das vítimas e nada mais.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

o velho do outono

ainda não se fazem notar as folhas queimadas,
que já te chamam a ti outono.
eu conheço-te como o velho cansado,
que ora sente frio,
ora tem febre,
ora chora,
ou - quiçá - espirra.
prefiro atravessar a rua sempre que te vejo,
evitar-te a todo o custo.
és simpático,
mas a simpatia nunca encheu estômagos
(ou corações).
demasiados são os dias em que me fecho em casa,
observo-te passear pelo friso da janela
(ansiosamente à espera que partas).
és a razão porque mais de mim não é valente,
o isolamento torna-me carente
(já a tua companhia afoga-me).
dizem que sabes muito,
mas o que tu sabes sei eu e sei-o bem.
contam que passaste por bastante,
mas não imaginas o que já suportei.
querido outono,
vai-te embora,
que me deixas triste.

domingo, 18 de setembro de 2011

odeio estar apaixonado, ponto de exclamação.

são dias atribulados,
lábios estagnados,
olhos desidratados,
sonhos envenenados,
humores disparatados,
instrumentos desafinados.
eu odeio estar apaixonado!

quero neste sentimento
crédito a adiantamento,
viver o momento,
ser selvagem - violento.
já não aguento,
tirem-me o talento.
eu odeio estar apaixonado!

são os temores,
tremores e os calores,
todos os aromas e odores,
de todas as notas e cores,
são intensos sabores.
senhoras e senhores,
eu odeio estar apaixonado!

constante é a fadiga
em lutar esta intriga,
mas ainda há quem diga,
que por muito que a siga,
ela será só uma amiga
neste coração de urtiga.
eu odeio estar apaixonado!

terça-feira, 13 de setembro de 2011

o meu pássaro tinha um nome

uma vez apanhei um pequeno pássaro, estava caído no chão. ao pegar-lhe, dei-lhe um nome e foi meu desde então. não voava, não comia, mal respirava e pouco chiava. nunca soube de que espécie se tratava, nem tive a mínima curiosidade. para mim, era apenas um pequeno pássaro, com penas e bico e o nome que eu lhe dei. ele nunca respondeu ao belo nome que eu lhe dei, mas desde o primeiro dia que foi assim que o chamei. escovei as sebosas penas negras até ficarem suaves como o pêlo dos mamíferos. insisti comida naquele reduzido bico cor-de-laranja. dei-lhe o carinho que me ensinaram e o que eu pensava ser amor. mas o pássaro que eu apanhei do chão nunca respondeu ao nome que eu lhe dei. cuidei dele durante dias e noites, fins-de-semana sem dormir. escutava-o recuperar, enquanto o deslumbrava na gaiola onde o fechei. partia-me o coração vê-lo assim, enclausurado. seria o melhor para ele, eu pensei. se o soltasse fugiria, certamente, tentaria voar e caía no chão. dei-lhe todo o meu amor incondicional, tudo quilo que sei tratar-se do meu bom coração. mas este pássaro que eu colhi do ninho de morte a que apelidam de chão nunca respondeu ao nome que eu lhe dei. tão bonito que era, esse nome que eu lhe arranjei. os meus esforços compensaram, sem desistir um dia ou uma hora. peguei-lhe gentilmente com uma única mão e ouvi-o chiar alegremente. que bem que ele cantava, sem eu pedir ou mandar - não faria diferença ordenar, pois nunca respondeu ao nome que eu lhe dei. no meu maior acto de masoquismo, carreguei-o na minha mão até ao lugar onde o encontrei. sentei-me e abri a minha mão bem junto daquele descuidado chão. o pássaro de penas negras e bico laranja, de quem tão bem cuidei, levantou voo de uma só vez, sem hesitar ou olhar atrás. desde esse dia que eu volto ao lugar onde o achei. ali, sento-me no chão e espero, recordando o pássaro que vislumbrei quase morto no meio do chão. o pássaro que eu salvei, mas que nunca respondeu ao nome que eu lhe dei. uma vez gritei esse nome, o belo nome que eu lhe arranjei. pensei tê-lo visto ao longe, de relance. era uma pomba que veio mendigar alguma coisa - já nem sei. continuei a fitar o céu, à procura do pássaro por quem chamei. mas o pássaro que tanto amei nunca respondeu ao nome que eu lhe dei.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

um beijo contido

este beijo contido,
preso e falso arguido,
vontade própria tem
de ti - mais ninguém.

esta lábia barata,
bêbeda e insensata
que tão mal representa,
não mais se aguenta.

este olhar violador,
nítido como um rumor,
de leve um toque clama,
bruto como uma chama.

este beijo delinquente
age de cabeça quente,
escapou à corrente
e é agora frequente.

sábado, 10 de setembro de 2011

animal vadio

meu amor, meu amor,
porque és também tu dor?
porque te finges insensato
ou te escondes em pudor?
tu, que anseias ser tão fácil,
porque temes a nudez?
abre-te para sempre,
abre-te uma e uma só vez!

sem ti, todo eu é vazio,
consumido pela sarna
como um animal vadio!
o sentido perde significado
e o significado perde sentido,
sem ti, o eu está perdido.
dá-me como esmola
uma só noite contigo.

não me olhes sem ver,
não me fales sem ouvir,
não me toques sem sentir,
ou me leias sem escrever.
abraça-me sujo como sou,
no lugar onde sempre estou,
sem réstia de piedade!
abraça-me, só por saudade...

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

feira franca é tradição

o joão pediu e implorou
que o levassem à feira,
até uma cruz pousou
na mesa de cabeceira.

tudo fez pela rapariga,
de seu nome bela inês,
até inventou uma cantiga
e lá ia “um, dois, três”.

os vendedores apregoam
os mais lindos materiais!
são peças que escoam,
são esbeltos aventais!

o pai do joão bem tenta,
com a arte do regatear,
pagar menos de quarenta
para aos amigos se gabar.

“feira franca é tradição”,
diz a mãe envergonhada.
mas o pequeno joão
só pensa na sua amada.

a inês tem as mãos frias,
trabalha na banca de gelado.
o joão viu-a todos os dias,
mas ficou sempre acanhado.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

sonhar alto

injusta liberdade p'ra voar alto
p'lo sonho que a queda traz morte certa,
quando a mente jamais está desperta,
se se encontra o vil coração exalto.

como memórias industrializadas,
suspensas em frágil teia de aranha,
a pouco e pouco, o falso, em mim, se entranha
como às pobres almas que estão danadas.

espero quem, de mim, nunca suspeite,
se chegue e me abrace como um amigo
só p'ra me sussurrar "eu avisei-te."

no amor sou repúdio — um sem-abrigo,
que, sem me teres algum dia aceite,
já conto em mil as histórias contigo.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

tremo

não tenho frio,
não tenho calor,
não tenho medo
ou qualquer dor.

o mundo gira,
eu giro também,
eu giro quieto
à espera de alguém.

ainda estou rouco
de silêncio gritar,
desde o momento
em que te vi chegar.

pareço um pequeno,
por tanto tremer,
sem outra razão,
só de te ver.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

só o presente é complicado

o futuro e o passado são simples por natureza, só o presente se mostra complicado.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

fugir

eram nossas, as palavras soltas,
também as vogais e consoantes.
mas foram as outras - ocultas,
que, enfim, nos tornaram distantes.

ouço lá fora um intrigante ruído,
perfurante - como algo a partir.
não é um sólido ou um fluído,
és somente tu a fugir.

para trás - que tens de voltar,
ficaram arrumadas as memórias.
a menos que nada queiras lembrar,
esquecer as infames glórias.

vejo lá fora um transeunte voltado,
nada trás e continua a sorrir.
não foi expulso ou roubado,
és somente tu a fugir.

jamais escutarei um novo som,
para outro dia os olhos abrirei.
fico aqui - o que resta é bom,
onde ainda me chamam rei.

sinto lá fora uma presença,
observa sem se fazer sentir.
não é chuva ou sentença,
és somente tu a fugir.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

ophelia

trago a alma rasgada, dilacerada,
por mãos que nunca me mereceram tocar,
pela voz da mulher danada,
que vontade só soube insinuar.

trago o peito enfastiado, inchado,
pelas garrafas que, noite após noite, bebi,
as vazias eu guardei ao lado,
para onde vis lágrimas verti.

trago a boca ofegante, distante,
com juras de palavras nunca a proferir,
mas eis que ela passa rasante,
quando eu berro por não me ouvir.

trago o pé torto, morto,
farto de rastejar o moribundo caminho,
entre sinais que não suporto,
na companhia de um eu sozinho.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

quando éramos pequenos #8

são demasiadas as vezes em que dou por mim embaraçado por cenas do passado, talvez mais do que fiquei quando realmente aconteceram. outras são eternas espinhas na garganta e tudo o que podemos fazer é evitar lembrar que lá residem. nem sempre é fácil. acontece também, com uma frequência superior às expectativas, mentirmos sobre pressão. mas o que torna esta afirmação fantástica é que a mentira é auto-degradante. quando se entra em falácia é esperado que seja para melhorar a própria imagem face aos que nos ouvem. no entanto, dou comigo a distorcer a verdade para dar uma imagem pior de mim. são coisas do momento, quando os neurónios não tiveram tempo suficiente para processar a informação antes de os músculos dos lábios receberem ordem de acção. há uns anos atrás, conheci uma simpática rapariga. era muito bem parecida e eu nunca cheguei a acreditar que ela pudesse revelar qualquer tipo de interesse pela minha pessoa. certo dia, fomos até à casa dos seus avós, que se encontrava inabitada, com o intuito de captar fotografias àquelas paredes esquecidas algures no tempo. estavam presentes mais um rapaz e uma rapariga, amigos. os nossos interesses eram, certamente, outros. começámos com jogos de adolescentes, para ver se se roubavam uns beijinhos aqui e ali. a contrapartida é que o jogo envolvia perguntas e numa delas eu devia responder quanto tinha perdido a virgindade. a verdade é que não havia qualquer data para responder. senti os olhos deles postos em mim, a julgarem-me, ansiando uma resposta credível. tudo o que consegui balbuciar foi que teria sucedido no ano anterior, uma mentira. a mesma questão caiu sobre a rapariga dos meus olhos e ela prontamente respondeu que acontecera durante os seus quinze anos. o meu mundo caiu e eu fiquei suspenso no vazio a tremer e a vasculhar tudo em meu redor numa procura incessável para encontrar algo onde me pudesse sustentar. voltei a cara para longe do seu olhar e comprimi as gotículas que se formavam de volta para dentro daquelas que foram as glândulas mais insultadas da minha existência. bati, involuntariamente, com a cabeça na parede e pensei em saltar da janela só para que aquele momento terminasse de uma vez por todas. cinco segundos e tudo passou em falso, o jogo continuou. o passado morre ao lado, pensei. uns dias depois, corri para a ver durante o intervalo da tarde. beijámo-nos, finalmente, pela primeira vez. o beijo em si não foi nada de especial, talvez o pior que já experimentei, mas o momento foi marcante. senti-me flutuar, como se o mundo coubesse na palma da minha mão e eu ditasse o seu destino. ela deixou de me falar, subitamente. até que, nos dias que sucederam, recebi uma carta onde se desculpava. explicava que se tinha voltado a entender com aquele que havia sido seu amante no passado. são os pequenos episódios da minha vida que me fazem corar de cada vez que me assombram o pensamento. tudo o que posso fazer é esperançar que as memórias daquelas personagens sejam piores do que a minha. eu sigo o novo dia convencendo-me de que se tratavam apenas de coisas de miúdos.

sábado, 20 de agosto de 2011

um diamante no céu

era um enorme disco
de matéria em rodopio.
apertou-se e acelerou,
foi assim o princípio.

o hidrogénio fundiu-se,
uma estrela se formou.
e todos os planetas
gentilmente iluminou.

ao longo dos anos,
pouco mais aconteceu.
a estrela e os planetas
vaguearam o céu.

mas a bela estrela
esgotou o combustível.
agora sem hidrogénio,
viver é impossível!

de hélio a berílio,
de berílio a carbono,
tenta desesperadamente
fugir ao abandono.

a pobre estrela incha,
na sua enorme depressão.
grande, gorda e vermelha
até terminar a combustão.

o derradeiro fim,
um turbilhão violento.
sozinha cintila ténue,
no vazio firmamento.

a pouco e pouco,
tudo escurece.
a pequena anã branca
também se esquece.

mas no leito de morte,
é mais bela que as restantes!
cem por cento carbono,
o mais puro dos diamantes!

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

o lamentável dia da minha morte

gosto de fitar as pessoas que passam por mim. olho-as fixamente, umas por momentos, outras por eternidades. quero saber que reacção têm quando se dão conta. não vejo boas reacções, tão pouco vejo más reacções. o que noto é a falta de qualquer resposta, uma apatia total à minha pessoa. sou um fantasma observador. a pessoa que atento agora é diferente, olha-me de volta - profundamente. tem os olhos abertos, mas está morta. sou eu. enquanto a vida se escapa, o meu espírito eleva-se e a visão de mim torna-se cada vez mais distante. relembro os momentos mais marcantes que impulsionaram a minha vida para o rumo que tomou. identifico os pontos sem retorno. talvez tudo tivesse sido diferente, se as escolhas fossem outras (talvez tudo tivesse sido igual). não sei que tipo de homem fui, tantos fizeram parte integrante de mim. uns efectivamente reais, outros puramente sonho. se me fosse dada a possibilidade de escolha, quem seria? o homem que reside na minha cabeça, honesto e bom, ou o homem que me assombra o coração, assassino de sangue frio? é a pergunta que repito vezes sem fim. não há resolução. naquele dia, ela perguntou-me o mesmo. "então, que homem és tu?" eu apenas lhe pude responder ambiguamente. "isso depende do que eu estiver disposto a fazer em relação à tua pessoa, quando nos levantarmos daqui. neste momento, estou perdidamente apaixonado por ti. posso seguir os conselhos do homem da minha cabeça, beijar-te no final e implorar-te que sejas minha. ou deixo que seja o homem do meu coração a tomar conta das minhas acções. ele levar-te-á para minha casa, onde serás estuprada e tua vida será ceifada por estas calejadas mãos." o final é um silêncio ensurdecedor.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

empecilho no peito

senti.
a incomodar-me,
a incomodar-me no peito.
pensei.
uma chaga,
mazela esquecida.
toquei.
um coração,
feito de papel.
vi.
quase imperceptível,
tentaram apagar.
li.
gravado a lápis,
o teu nome.
lembrei.
amarrotado,
caiu em desuso.
colei.
na parede,
na parede vazia.
esqueci.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

quis crescer para amar, mas amei para crescer

foi, possivelmente, a mulher mais bonita que vi em toda a minha curta vida. não me arrependo um segundo que seja de a ter amado tão honestamente, de a ter seguido tão fielmente ou de a ter encontrado tão desesperadamente. todos os acontecimentos anteriores guiaram-nos àquele ponto de encontro, no momento mais certo. não poderia ter-se desenrolado de qualquer outro jeito. só guardo gotas de saudade, que escorrem nas arejadas paredes do meu destronado coração. adoro eventos culturais e observar desconhecidos a conviver entre si. nada me dá mais gozo do que sentir-me parte desta fantástica sociedade, escondido de todos num mar de caras tão idênticas quanto as demais. contudo, era um mero estudante de poucas posses. a minha agenda cultural sofria um abrupto corte de cada vez que abria a carteira. no entanto, sempre que há um acontecimento público gratuito, faço sentir a minha ténue presença. houve um concerto, na zona histórica da cidade. era agosto, uma segunda-feira à noite, e tinha pouco ou nada para fazer. cheguei ao recinto e vislumbrei aquela mulher. perdi-me. abri caminho até encontrar uma boa posição, atrás dela. tinha cabelo cor-de-toranja, a pele branca como a farinha e um olhar penetrante. tinha também um filho. o pequeno rapaz de cabelo loiro, não mais de três anos de idade, alternava entre o carrinho e o colo. para mim, era a única explicação porque tal vénus permanecia isolada em solidão num perímetro circular desmilitarizado. era como se carregasse um sinal no pescoço com o aviso "material em segunda mão". quando a música começou, ela fez piruetas ao bebé, que sorria e sorria. eu não me contive, perante tamanha ternura, e sorri também. tão alto foi o meu sorriso que ecoou por todo o recinto! ela ouviu-o e espreitou para trás, apanhando-me em flagrante delito. esboçou-me um pequeno movimento dos lábios, como uma carta onde se lê "obrigado, por seres simpático para o meu pequeno". mas o meu coração gritava "esta luxúria consome-me". o que aconteceu em seguida, não sou capaz de especificar. é uma visão turva, uma névoa espessa que esconde a palma da mão. assim que o espectáculo terminou, fomos até uma esplanada próxima. ficámos a conversar sobre tudo e sobre nada, este em particular. faziam-se ocasionais caretas para o menino no berço, até que adormeceu de cansado. era mãe solteira e o homem nunca mais se viu. pensa-se que trabalha em construção civil na suíça. tornámo-nos incrivelmente íntimos, num pequeno piscar de olhos. os nossos dias eram preenchidos com brincadeiras a três. eu saía das aulas e corria para o apartamento dela, onde ansiava o seu regresso da padaria onde trabalhava. percorremos as terras deste país, com as minhas mãos no volante do carro que os pais lhe deram. adormecemos ao pé do mar e depois adormecemos ao pé do rio, mas acordámos junto de uma torre abandonada, que exploramos minuciosamente em busca de tesouros perdidos. uns meses depois, chegaram as terríveis discussões. os meus sonhos de me tornar professor universitário diminuíam com o aguçar do meu amor por aquela mulher. muitos anos de estudos marcavam o meu futuro, com a impossibilidade de suportar aquela família que bateu à minha porta. a minha fonte de rendimento eram os meus progenitores, das quais não poderia exigir mais. mas nada disso importou. pensei em terminar o curso e esquecer a carreira docente, ponderando arranjar um emprego. ser o homem que a sociedade que tanto admirei esperava que fosse. sempre sonhei um dia ser o orgulhoso pai de uma linda menina a quem chamaria benedita flor e eterno sabor. contudo, nunca aceitaria ter um filho desta mulher. sei que se tal acontecesse, o amor que sinto pelo pequeno rapaz iria diminuir e tornar-se marginal. abdiquei de dois sonhos, mas abdicaria de dez mais, sem pensar. disse-me, certa noite ao deitar "o menino está doente, é terminal", e nunca mais se falou disso. não pude evitar um sonhar egoísta sobre a desgraça. prosseguir o meu doutoramento, incentivá-la a terminar o curso e retomar as rédeas daquela que era uma luta há muito esquecida. de um momento para o outro, tão abrupto quanto o seu início, tudo terminou. cheguei um dia a casa e esperei por ela. esperei, esperei e esperei. esperei dias, esperei semanas e esperei meses. pensei "ela não era capaz de abandonar esta bela criatura de cabelos dourados". os anos passaram-se e ela nunca regressou. o rapaz cresceu e tomei a liberdade de mudar o seu nome para benjamim. durante as noites mais frias, quando o céu se encontra cristalino, vamos até ao observatório da universidade. ficamos a contar as estrelas, como os dias que se passaram desde que ela largou as amarras de uma vida que nunca pediu e trocou-as pela liberdade de um sonho que ainda persegue.

domingo, 14 de agosto de 2011

suspiro de revolta

eu tenho uma visão distorcida do mundo que me rodeia,
onde todo o homem é igual a si mesmo e ao seu próximo.
eu tenho uma visão distorcida do mundo que me rodeia,
onde o amor é cego, surdo e mudo.
eu tenho uma visão distorcida do mundo que me rodeia,
onde as guerras são travadas em papel.
eu tenho uma visão distorcida do mundo que me rodeia,
se assim não o fosse, não conseguia viver aqui.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

está aí alguém?

tempo a gente tem, gente é que a gente não tem.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

foi-se

o meu amor morreu!
o meu amor morreu!
o meu amor morreu!
o meu amor abandonou-me,
e depois morreu!

terça-feira, 9 de agosto de 2011

amigos inseparáveis

não foi, de todo, coincidência alguma. nasceram no mesmo dia e no mesmo hospital porque helena e beatriz sempre o desejaram, desde a promessa que fizeram quando tinham treze anos. "um dia iremos encontrar aquele rapaz especial e faremos amor na mesma noite, durante a lua cheia. nove meses depois estaremos a segurar mutuamente as nossas mãos, com a força de duas mães. os nossos filhos, ambos rapazes, irão ser mais do que irmãos. serão inseparáveis, como a terra e a lua." assim se passou, o momento idêntico ao sonho de criança. rui e lucas nasceram com apenas cinco minutos de diferença um do outro, sem suspeitar que a ligação entre eles seria, um dia, de carne e sangue. contra todas as encrencas de lucas e emoções de rui, os rapazes sempre foram o mais próximo humanamente possível. no seu décimo terceiro aniversário, os dois acordaram bem cedo. a promessa de uma celebração inesquecível era demais para manter as suas mentes em estado hibernativo. enquanto helena e beatriz se perdiam nas tarefas da cozinha, os rapazes foram brincar para o pinhal atrás da casa. ao ouvirem os seus nomes ecoar pelas árvores, o lucas pediu ao rui para fazerem uma promessa vitalícia. "não importa as pedras que nos atirem para o caminho, juntos iremos sempre arranjar maneira de as remover. não importa as pessoas que se interponham entre nós, jamais nos conseguirão dissolver." talvez por ter ansiado o manjar que o esperava a semana toda, rui nunca se apercebeu do verdadeiro significado daquele pacto. dois anos depois, lucas apaixonou-se por inês. a rapariga de pele cor-de-neve, cabelo negro como a noite e olhos fundo de lago a quem se entregou cegamente. daí em diante, os três tornaram-se um grupo. faziam tudo em conjunto, como um só. terminado o secundário, era altura de partir para a universidade. o plano consistia em ir para a mesma cidade e partilhar um só apartamento. lucas foi estudar física para a faculdade de ciências da universidade do porto, mas o rui e a inês ficaram colocados na universidade de coimbra. quando confrontados, admitiram nunca ter amado outra pessoa que não ambos - mutuamente. inês conheceu o rui antes do lucas e apesar de sempre estarem cientes do sentimento que nutriam um pelo outro, rui nunca conseguiu agir. foi neste contexto que inês encontrou um porto seguro em lucas. no entanto, durante o verão do seu décimo oitavo aniversário, a tensão tornou-se insuportável. combinaram não agir até partirem para cidades diferentes, pensando que a distância facilitaria a separação para lucas. a verdade é que, os três, nunca mais se falaram. inês e rui construíram a sua vida, desistindo completamente de incluir lucas, que se tornou um proeminente solitário. nada mudou nos vinte anos que se seguiram, apenas os ponteiros do relógio concluíram ciclo após ciclo. numa chuvosa noite de verão, surge à porta de lucas uma inês envelhecida de roupas ensopadas. enquanto acumulavam níveis de álcool elevados a percorrer nas veias, lembravam-se do tempo em que namoraram. fugindo de um marido abusador, inês reencontra refúgio em lucas. nessa noite fizeram amor, como se fossem de novo adolescentes. lucas acorda, de manhã, ao som das lágrima de inês. "o rui está doente. precisa urgentemente de um transplante de rins ou morre. está há um ano a fazer diálise por máquinas, mas já não é suficiente. vocês partilham o mesmo grupo sanguíneo e pensámos que poderias doar um dos teus. ele não abusa de mim, seria incapaz! também está ciente das condições em que me ofereci a ti, por isso não tens de sentir remorsos. a lista de espera é enorme e não temos mais ninguém..." admitiu, sem conseguir erguer a cabeça. sentindo-se usado, traído e novamente enganado, lucas só conseguiu proferir "vai-te embora imediatamente e jamais ousem aproximar-se de mim, doravante". passaram-se semanas e nada parecia aliviar a angústia crescente no seu coração. dirigiu-se a coimbra, onde os médicos confirmaram que satisfazia todas as compatibilidades para um transplante com rui. antes de entrarem na sala de operações, os dois rapazes - agora homens - olham-se. deitados nas suas macas, sentindo a anestesia a surtir efeito, rui estende a mão. lucas hesita, mas agarra-a. rui quebra um silêncio de vinte anos, dizendo "sabes que faria o mesmo por ti". lucas sorri e responde, antes de perderem os sentidos, "não, não sei".

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

declínio

aquela minha afamada glória,
tão rápido quanto surgiu,
evaporou-se da memória.
para onde? ninguém viu.

perco eu a réstia de sanidade,
nas dementes linhas do papel.
chegou uma carta à cidade,
onde inglês se lia "farewell".

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

vinte anos depois

vinte anos já correram e passaram,
desde que regressei do outro lado.
muitos são os corações do passado,
muitas são as mulheres que me amaram.

entre as noites frias desejo voltar
a sentir teu corpo nu sobre o meu
e esse beijo que mais ninguém me deu —
como em teus lábios, vejo o meu olhar!

do peito envolto em eterna penumbra,
eleva-se um murmúrio vagabundo
p'ra lembrar que o meu lugar é na umbra.

uma sinfonia dos confins do mundo,
toca na noite mergulhada em sombra...
...o amor é um respirar bem fundo!

quarta-feira, 27 de julho de 2011

a paixão do estripador

ele pensa que estão mortos, todos os corpos que dilacerou. mas não, esses vivem na sua cabeça. suspirando constantemente sentenças de vingança. homens, mulheres, jovens e idosos esventrados, sem distinção. é um transeunte, sempre deambulante. segue os murmúrios ensurdecedores, a sanidade já desapareceu há muito. o plano de fundo altera-se, os companheiros surgem e nada mais. vítima atrás de vítima, num ciclo que repetirá até ele próprio se tornar um eco. mas surge uma voz, que se destaca das outras. nesse dia, ele pisa o alpendre e bate à porta. tudo está escuro e sereno, só os corvos assobiam a sua melodia favorita. aquela que o havia de esperar com um sorriso, jaz deitada no chão ensanguentado. implora piedade - que o coração nunca fora tão pequeno, como no dia em que as vozes de todos os demais se juntaram para ceifar a sua paixão. apunhalada no peito, pela própria mão, quando ela o rebaixou a convidado.

sábado, 23 de julho de 2011

não, longe

aquele grupo era constituído por mim e pela madalena, a minha companhia, ao que se juntou o josé e a eduarda. o plano era esperar os restantes dois, o pedro e a mafalda, para jantar e apreciar a sétima arte. sempre me considerei uma pessoa com fracas aptidões sociais, sem alguma vez saber como agir perante os da minha espécie ou o que a sociedade em geral espera de alguém como eu em certas ocasiões. contudo, há determinadas interacções que se consideram básicas. todos nós as activamos instantaneamente, sem pensar, como respirar. encontrámos o josé e a eduarda primeiro. a madalena cumprimentou a rapariga, com um beijo em cada face, e repetiu o mesmo procedimento para o josé. eu fiz a minha parte, também. apertei a mão do rapaz, com força moderada. um bom cumprimento, treinado e curto, como este deve ser. faltava-me interagir com a madalena. depois de observar o sucesso da actuação entre as duas, pensei que imitá-lo seria o suficiente para despachar aquilo que, para mim, é um momento desagradável. iniciei o movimento de beijar cada uma das faces da eduarda, quando fui interrompido por palavras por ela pronunciadas. "não, não quero." foi o que ela disse e a noite prosseguiu conforme o programa.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

quando nos conhecemos

- lembras-te do dia em que nos conhecemos?
- ah, esse dia. sim, lembro-me, claro.
- foi a primeira e única vez em que tive o coração partido antes de abandonar as minhas mãos.
- preocupas-te demais, joão. estamos aqui hoje, juntos, não estamos?
- estamos sim, para minha eterna felicidade.
- é porque tinha de acontecer, independentemente das voltas e reviravoltas que fomos forçados a superar.
- acho que tens razão, joana.
- então vá, não penses mais nisso.
- quando me lembro, é uma visão tão viva como assistir a um filme em alta definição. eramos nós, sozinhos numa mesa para dois, quando entrou aquele rapaz no café. estava a contar-te algo e os teus olhos vidraram-se em tal personagem, não mais os teus sentidos tiveram noção da minha presença. senti-me evaporar no ar, tornar-me um fantasma no seio deste mundo tão vivo. penso que se me tivesse levantado e saído não terias reparado.
- oh, deixa-te dessas coisas. é claro que teria reparado, joão! mas ele era tão charmoso, às vezes uma pessoa não se contém.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

a noite

a noite, para mim, é uma viagem idiossincrática. os meus sonhos são um interruptor que separa o adormecer do acordar. mal me deito e o sol já faz por me massacrar. nunca houve um doce luar, é tudo um ciclo vicioso de sofrimento. quando me falta, anseio por ela. mas com o primeiro raiar do brilho da lua, abomino a sua existência. rogo-lhe pragas para que me abandone à eterna escuridão do sol. o mundo estagnou e eu sou a única peça móvel neste imenso tabuleiro, mas escolho ficar. escondo-me à vista de todos, imobilizado até o medo desaparecer. senhora de negro, que chegas inesperada em pé levemente, guarda para ti o beijo do crepúsculo e abraça-me na alvorada. apenas o sangue da cidade faz brilhar junto de mim um pequeno refúgio luminoso, mas é arte do homem. prefiro o ténue cintilar das estrelas que tão orgulhosamente ousas apresentar, noite após noite. o que esperas de mim, eu não sei. tudo o que preciso é uma cantiga de embalar, para que eu saiba que adormeci contigo ao lado. quando acordar, preciso de saber que foi tudo um belo sonho e não apenas um pressionar no botão que altera a faixa diária.

sábado, 2 de julho de 2011

testamento

o mundo vai acabar amanhã e eu tenho nada para mostrar ou rever. cresceu-me uma espiga no coração, com os escassos nutrientes reminiscentes de um passado farto, da qual o presente tem nada mais do que uma ténue lembrança. a quem dedico eu toda esta minha herança?

quinta-feira, 30 de junho de 2011

a namorada de papel

esperei por ti a tarde toda. contei os segundos e minutos até perfazerem horas. fingi ler e escrever, mas não consegui ultrapassar o mesmo paragrafo recorrente. bebi um café, desfolhei o jornal para esconder o meu olhar impaciente e levantei-me para ir à casa de banho vezes de mais. naquele ponto de encontro onde combinaste comigo, as pessoas mudavam constantemente a paisagem ao meu redor, tão rápido quanto os carros lá fora — na rua. só o lugar que guardei para ti permaneceu sempre vazio. preocupei-me com o que te pudesse ter acontecido. depois irritei-me e amaldiçoei o nome que a tua mãe te deu. por fim, desesperei. convenci-me que não ias entrar pela porta e inspeccionar o ambiente de raspão, à procura da minha face — que já conheces de cor. comecei a sincronizar pensamento e coração e atingi a dura placa da realidade — expulso do paraíso. talvez tenhas desistido de mim - esquecido de vez. quiseste abandonar-me e não encontraste a coragem. ou, se calhar, imaginei tudo. nunca tive alguém por quem esperar. começo a acreditar que és um esboço que rabisquei no papel, com a tinta negra da solidão. pensei que, ao fechar os olhos e desejar com todas as forças, pudesses saltar para a minha realidade. mas não. estarás sempre confinada entre paredes que não posso tocar.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

um poema em duas linhas

não há sentimento equiparável ao constrangimento,
cuja cura é o passar do tempo.

terça-feira, 28 de junho de 2011

por onde estou

já não sei se me encontro na realidade de ilusões ou na ilusão de realidades.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

velhice

um dia, a vida não será mais do que um conjunto de retrospecções em ciclo infinito. alternando entre o imaginário do que não aconteceu e as aparições do que, talvez, tenha ocorrido.

sábado, 25 de junho de 2011

ténue é a linha

o meu amor é um ódio sem precedentes.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

equilíbrio

quis tanto de ti, que me esqueci de pôr um pouco de mim.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

susana ariaga

disse-me um sábio senhor,
é o dia do teu aniversário.
ouvi por aí um rumor,
não me faltará adversário.

quis a vontade que te falasse,
mas era maior o orgulho no peito.
qualquer prenda que arranjasse,
seria prova da falta de jeito.

minha doce susana ariaga,
desejo-te todo um belo dia.
o meu coração é que paga,
jamais te falte a alegria!

serei o teu último regalo,
pouco ilustre, certamente.
deste humilde vassalo,
um pequeno beijo em frente.

eu sou rei no anonimato,
na sombra de toda a gente.
neste amor, o meu ultimato,
"que não mais me atormente!"

quarta-feira, 22 de junho de 2011

querer e ter

aquilo que eu quero,
tu não queres.
o que tu queres
não é o que quero.

o que nos dão,
não é suficiente.
o que é suficiente
não nos dão.

o que eu quero,
nunca vou ter.
o que vou ter,
nunca quero.

o que tu queres,
não é o que tens.
o que tu tens,
não é o que queres.

eles fazem de nós
o que querem.
o que quiserem,
eles têm de nós.

tudo o que pedimos
passa ao lado.
e passará ao lado
o pouco que pedirmos.

terça-feira, 21 de junho de 2011

o rapaz lobo

quando andava a viajar pelo país, passei a noite numa pequena e remota aldeia. parecia recortada da idade das trevas, aquando da temível inquisição católica na europa, e colada directamente nos nossos dias. à noite, durante um agradável serão para beber chá, o senhor serafim, que amavelmente me cedeu uma cama para dormir, partilhou comigo uma história que me fez e faz arrepiar ao nível da própria espinha. havia um pequeno mas estranho rapaz há, talvez, uns dez anos atrás. o seu nome era leonardo e ele detestava-o. isto porque, o seu verdadeiro fascínio residia nos lobos, que ouvia chamar por ele à noite, e não nos aborrecidos leopardos que aquele nome parecia evocar. os seus pais estavam bem cientes daquela hedionda obsessão que o rapaz tinha em fugir para ser um lobo. todas as noites ele tentava escapulir-se e, em cada uma delas, as suas tentativas eram frustradas, completamente em vão. leonardo adormecia a chorar. sabia que o uivar que ecoava pelo vale eram os seus verdadeiros progenitores a entoar-lhe uma canção de embalar. chamaram-no de idiota e acusaram-no de lunático. a cada dia que passava, leonardo sentia-se mais e mais animal. o seu estatuto na pequena aldeia situava-se abaixo dos valentes cães de caça. tal era o seu desejo em partir, que os seus pais viram-se forçados a acorrentar o rapaz. não havia qualquer sombra de liberdade para ele. o seu quarto era uma masmorra com paredes de meio metro e uma janela gradeada a aço. só saía à rua pelas mãos de um dos seus familiares, devidamente segurado por uma grossa corda em torno do pescoço. mas um dia, enquanto o pai comprava carne, o pequeno leonardo apoderou-se de um dos utensílios que se encontravam descuidadamente espalhados pela bancada. cortou as amarras que o prendiam e fugiu. fugiu como jamais havia corrido alguma vez no passado. fugiu e nunca mais alguém o viu. leonardo não podia estar mais feliz, ia ter com os seus progenitores lobo e aprender as suas peculiares interacções sociais. mas, acima de tudo, ia uivar e caçar como os grandes caninos ancestrais. uma semana passou, desde o desaparecimento do pequeno jovem. serafim, que andava a vaguear as terras altas com o seu cão de caça, deparou-se com algo estranho no chão. aproximou-se para inspeccionar o que tanto interesse suscitava ao seu companheiro peludo e horrorizou-se com o que viu. eram restos humanos, incrustados numa coagulada poça de sangue e alguns pedaços de roupa rasgada. era evidente que se tratava de uma criança e a roupa assemelhava-se àquela de leonardo, mas pouco mais era perceptível. fiquei absolutamente chocado com tais alegações, tanto pela maneira como trataram o pequeno rapaz, como pelo destino que encontrou. inquiri se conseguiram ter a certeza tratar-se do jovem foragido. serafim respondeu-me que, escondido no sangue, jazia um pequeno medalhão que se sabia pertencer a leonardo. algo que o seu avô, a quem costumavam chamar de lobisomem, lhe confiou e que nunca deixara de usar. as marcas cravadas na carne eram idênticas àquelas que os lobos haviam outrora cravado no gado.

domingo, 19 de junho de 2011

voa

voa pássaro, voa,
voa livre de voar,
voa por aí à toa,
voa até cansar.

vai amigo, vai,
vai daqui p'ra fora,
vai e ensinai,
vai embora agora.

volta um dia, volta,
volta à tua casa,
volta com escolta,
volta pela tua asa.

vê o passado, vê,
vê essa viagem,
vê de novo e lê,
vê fora da margem.

voaste pássaro, voaste,
voaste bem distante,
voaste e amaste,
voaste incessante.

sábado, 18 de junho de 2011

aleatoriedade

tudo acontece por obra do acaso.
tudo, excepto o que não conseguimos admitir como possível.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

aprender

quanto mais sei, mais quero esquecer.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

no hotel de belém

ao entrar no quarto,
        não se ouviu um som.
        tudo parecia bom,
                fosse aqui ou além.
mas eis que do fundo surgiu,
                uma voz a gritar "ninguém".

desci rapidamente as escadas.
        "o lugar está vazio",
        garantiu o senhorio,
                "não há maior paz em belém".
mas eu juro, de novo, ter ouvido,
                um sussurro pronunciar "ninguém".

deitei-me e cobri a cabeça.
        "só pode ser alucinação,
        acalma-te coração!"
                cerrei os olhos e contei até cem.
mas estava prestes a dormir,
                quando o silêncio mencionou "ninguém".

não existem fantasmas.
        algo se esconde, certamente.
        "mostra-te, cobarde latente!"
                "o que seria?" pensei eu, "quem?"
mas a resposta era repetitiva,
                nada mais do que "ninguém".

virei o quarto do avesso,
        comportei-me como louco,
        desisti e pensei um pouco.
                conclui não haver sombra de alguém.
mas quando olhei pela janela,
                eu vi um corvo proclamar "ninguém".

questionei o pássaro negro,
        inquiri-lhe, talvez a medo,
        esperei ouvir em segredo.
                "o meu pobre coração, quem o tem?"
como se nada tivesse ouvido,
                continuou repercutindo "ninguém".

quarta-feira, 15 de junho de 2011

assusta-me

- diz que não me amas.
- o quê?
- diz que não me amas, joão. nunca me amaste!
- não!
- eu estou a pedir-te.
- jamais farei tal barbaridade! recuso-me a perpetuar tamanha falsidade, joana! nem acredito nas palavras que balbucias, por vezes. pareces tão deslocada da realidade. assustas-me assim, dessa maneira.
- maldito sejas, joão! se me amas, devias fazer tudo o que te peço.
- e mais nada?
- e tudo o que eu te peço é já um elevado privilégio para ti, meu senhor!
- estás completamente fora de ti! o que raio aconteceu?
- eu nem devia dizer isto, no estado em que estou. mas tem calma, joão! estás aí todo inquieto, quando eu é que preciso de um belo susto.
- não estou a perceber.
- estás a falar comigo há cinco minutos e ainda não reparaste?
- só que estás demasiadamente estranha, mais do que o costume.
- cala-te! não vês que estou com soluços?

sábado, 11 de junho de 2011

pessoas más, pessoas horríveis

considero este mundo um lugar horrível e miserável, inferno que não desejo ao meu pior inimigo. todas as pessoas, sem uma única excepção, são más. ou, talvez, apenas eu serei o verdadeiro malvado. acontece que eu tenho a certeza absoluta em que estou correcto, toda essa gente é hedionda. ou, então, se calhar sou só eu. serei tão abominável quanto acredito serem os demais? pensando bem, eu sou somente um. não é, de todo, impossível que a restante humanidade seja a cara fria desta ambígua dualidade. bom, mas é, certamente, mais provável ser eu a escória ambulante. tal conclusão, ainda que pertinente e bem fundamentada, causa-me imenso transtorno. não sou perfeito, tão pouco o desejo. é, portanto, aceitável errar. conto com essa falha para me salvar. a imperfeição é a minha esperança, neste dilema. a fraqueza torna-se a minha última fortaleza. esforcei-me tanto para ser bom, humilde e suportável. quis ainda ser gentil. sempre evitei importunar os malditos, a menos que explicitamente necessário. mas é plausível, se a disposição assim me convier abrir um pouco mais os olhos, que eu é que carrego a amargura para o ambiente circundante. nesta dúvida implacável, vou-me embora.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

o rapaz com o casaco de metal — capítulo II: como surgiu tal nome

capítulo I: benjamim
capítulo II: como surgiu tal nome
no liceu, verifica-se a coexistência de toda a espécie de estereótipos, que assim ganham vida. sendo aqueles imprescindíveis, o grupo das raparigas mais bonitas, desejadas por todos os rapazes (e alguns professores) e o conjunto de todas as restantes, praticamente invisíveis. a elite masculina, por seu lado, é reduzida aos atléticos desportistas e mais abastados, os outros são decoração ambulante. tal bela organização estratificada e altamente hierarquizada seria o suficiente para caracterizar todas as escolas, mas não esta. benjamim era tão peculiar, que não se enquadrava em algum estereótipo comum. a sua existência era conhecimento popular, que suscitava um certo fascínio e curiosidade por parte dos seus pares, uma curiosidade talvez típica daquela idade. falava com ninguém por opção própria, como um erudita isolado na multidão. entretinha-se a ler poesia, ficção científica e, principalmente, a sonhar. benjamim fazia parte dos melhores alunos, mas não era considerado o melhor (ainda que o fosse, na verdade). isto porque, os seus professores não eram capazes de compreender as suas brilhantes respostas, deduções e abstracções. quando tal acontecia, ao invés de se submeterem ao ridículo, simplesmente anulavam aquela porção. benjamim pouco se importava, apercebia-se sempre e sorria. estava ciente da veracidade das suas respostas e percebia que nem todos eram capazes de entender a bela genialidade do universo. todo o tempo livre era investido enclausurado dentro das paredes do seu quarto, onde mantinha diversas ferramentas exóticas, protótipos e projectos. interessava-se imenso por biologia, nomeadamente a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin. no entanto, a sua grande paixão era a física, a matemática e a engenharia. o expoente máximo da grandiosidade da arte intelectual do homo sapiens. sempre que sofria de insónias, gostava de se deitar na cama a fitar os tons brancos do tecto, enfeitado com o seu candeeiro, depois de reencaminhado da casa dos seus avós. costuma-se ensinar a contar carneiros para adormecer, um pequeno truque. benjamim preferia recitar números primos. certo dia, enquanto experimentava diferentes químicas, combinações e reacções, produziu um novo tipo de fibra metálica. era tão estranha! maleável como o algodão, resistente como o kevlar e tão pesada quanto a lã. ficou excitadíssimo e imaginou de imediato peças de vestuário à base da sua nova descoberta. depois de alguns dias, tinha um casaco pronto. ao estilo motoqueiro, com uma aparência similar ao cabedal, mas bem mais imponente! na primeira vez que o vestiu para a escola, toda a gente reparou, toda a gente comentou. apelidaram-no de "o rapaz do casaco de metal" e doravante seria sempre assim conhecido, pois não houve um outro dia em que saiu de casa sem ele. benjamim era tão orgulhoso do seu acessório, ainda que fosse gozo, apresentava-o com o maior dos prazeres.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

helena

a menina do joão
não é mais uma menina.
cresceu de raspão
e está toda feminina.

quem a viu, quem a vê,
sofreu tamanha metamorfose!
tal borboleta à sua mercê,
que se magoa, vaza linfose.

são pernas de sonho,
tem cabelo louro - ela ordena!
mas este lugar é medonho,
corrompeu a bela helena.

uma autêntica cinderela,
só simpatiza com príncipes.
tantos querem cuidar dela,
mas não aceitam ser cúmplices.

todas as noites num castelo diferente,
espera um novo rei abastado.
mas a helena está doente,
só o joão fica ao seu lado.

a menina sem coração,
há muito que não é pequena.
está estendida no chão,
abandonaram a helena!

sexta-feira, 3 de junho de 2011

o oftalmologista (e outros que tal)

fui ao oftalmologista, há uns dias atrás, e apercebi-me de uma atitude minha que é, certamente, partilhada por todos nós. temos imenso orgulho em obter bons resultados num teste, o ego cresce, seja ele qual for. ainda que, se nos sairmos bem no dito cujo, hajam implicações negativas para a nossa pessoa (ou alguém próximo). o que me apercebi foi que, durante aquele exame de rotina em que o senhor apresenta letras e temos de as ler com as lentes de ensaio, fazemos sempre um esforço para nos sair bem. tentamos adivinhar, ainda que não seja mais do que um borrão. já me vi decorar linhas só para as poder acertar mais tarde, quando era mais pequeno. a verdade é que gostamos de agradar os outros, tendo os melhores resultados, seja em que teste for. mas é algo que faz pouco sentido, pois sendo o mais honesto possível teremos um tratamento melhor adequado. uma vez conheci um homem que, sempre que o médico o mandava realizar análises, debruçava-se sobre uma fastidiosa e rigorosa dieta. só uns dias depois de largar as carnes gordas, os doces e o vinho se dirigia ao laboratório. na altura de devolver os resultados, lá ia ele todo satisfeito. regressava a casa bastante orgulhoso, pois as análises indicavam que estava tudo dentro dos limites legais e que podia continuar com a sua dieta regular rica em hidrocarbonatos, gorduras saturadas, açúcar e, especialmente, álcool. não faz sentido, e qualquer ser racional com o mínimo de inteligência o sabe. no entanto, temos esta vontade incontrolável de agradar os outros ao sermos os melhores do teste! pensamos, convencidos da vida que somos os maiores, ter enganado toda a gente. no entanto, só nos iludimos a nós mesmos.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

um outro eu

proponho, para hoje, uma pequena experiência de pensamento. o assunto que trago no bolso, e exponho agora, é esse que tanto me fascina. vamos então tomar o nosso lugar e pensar sobre as engrenagens do universo. devo apenas, antes de mais, salientar que isto se trata explicitamente de uma actividade lúdica e que, mesmo referenciado certas verdades científicas, deve ser encarado como uma pequena brincadeira. um jogo, para os aficionados como eu. vamos começar pelo nosso pequeno recanto, o humilde planeta azul e os seus magníficos habitantes. existem mais estrelas no céu visível do que grãos de areia em todas as praias do mundo, podemos apenas supor quantas outras tantas se escondem para lá desta fronteira esférica. sabemos que o nosso sol é uma estrela bastante humilde e, acima de tudo, comum. recentemente confirmámos a existência de outros sistemas solares, aparte do nosso próprio. podemos assim concluir que o que julgamos ter de tão único e especial, na verdade, pode ser a regra e não a excepção. falo unicamente das massas rochosas - ou não - que circulam fornalhas de hélio. as estimativas podem ser bastante conservadoras, mas ainda restam milhares de milhões de sistemas em todo o universo observável. para mim, e esta parte é já especulativa e pessoal, a existência de vida em paralelo com a nossa é uma certeza. não significa que tenha evoluído tanto como aqui, na terra, mas, pelo menos, até ao estado microbial. o qual se torne perfeitamente reconhecível por nós. só pelas leis do acaso, ou a matemática das probabilidades, temos de aceitar que, assumindo a minha especulação anterior e admitindo que alguma vida possa ser tão exótica que será sempre irreconhecível aos nossos olhos, pelo menos, em alguma parte desta vasta imensidão, a química tenha seguido um rumo semelhante ao nosso. assumindo o que foi debatido anteriormente como o ponto de partida, a verdadeira experiência começa agora. é plausível admitir, até prova irrefutável do seu contrário, que, algures na noite, sobre nós a química tenha dado origem a seres unicelulares complexos, em tudo semelhantes à sopa primordial do nosso próprio planeta. voltemos a pensar nas probabilidades. mesmo que apenas uns poucos milhares de sistemas planetários incluam um corpo rochoso com condições similares a este nosso oásis estelar, podemos continuar a especular que pelo menos um tenha sobrevivido o tempo suficiente para que esse esboço de vida tenha evoluído para formas ainda mais complexas. é possível não estar perceptível, neste momento, onde pretendo chegar. vou pedir agora que demos um pequeno passo de gigante, rogando uma última vez ajuda às leis do acaso. suponhamos que exista, neste imensurável vazio tão repleto, um planeta inserido num sistema com condições idênticas àquelas encontradas no nosso. uma pequena nota, para relembrar a importância das probabilidades num espaço de acontecimentos quase infinito. o universo é muito maior do que aquilo que conseguimos ver. este expande-se a uma velocidade superior à da radiação electromagnética no vácuo (velocidade da luz), o que nos limita o campo de visão igualmente em todas as direcções, formando à nossa volta uma imensa esfera-prisão. retornando à nossa linha de pensamento. suponhamos que o somatório de todos os eventos que ocorreram nesse planeta o levaram a tornar-se uma cópia exacta do nosso. não antes, não depois, mas em paralelo connosco, neste preciso momento. este texto escrito por uma versão distante de mim mesmo. será um paradoxo? a verdade é que a simultaneidade é uma realidade-ilusão. nunca iremos ter a certeza de que algo ocorre, realmente, no mesmo instante, uma vez que, para observar algo, esse evento tem de já ter ocorrido e, por conseguinte, pertencer ao passado. ou seja, tudo o que constitui o universo não é nada mais do que pequenos fragmentos de uma matéria temporal. e o tempo, que nos parece algo tão fluído e contínuo, pode muito bem ser uma dimensão discreta - ou por impulsos. este conjunto de informação unitária, quando somado sobre um emaranhado de diversos eixos de tempo cruzados, dá origem às dimensões e tudo o que nos rodeia. ainda que esses eixos sejam infinitos, podemos arbitrar um ponto qualquer sobre eles e designá-lo como uma origem - ou referência. a partir desse ponto, reparamos de imediato em padrões (a nossa espécie adora-os) e começamos a inferir sobre eles. uma vez que o que verdadeiramente separa o planeta que descrevemos do nosso é o tempo, e não o espaço, se eu enviasse um presente ao meu outro eu, e ele obviamente iria enviar o mesmo presente para mim, o que aconteceria a meio do percurso, quando os dois se encontrassem? a verdade é que o presente dele viria para mim e o meu seguiria o resto do caminho até ele (pode parecer um pouco óbvio, e é). e se, o ponto a que chamei o meio do percurso, não for nada mais do que um espelho cósmico? algo onde a minha mensagem é reflectida de volta para mim e eu sou iludido do facto de que existe um outro eu num planeta idêntico. ao percorrer o circuito do eixo temporal, impulso atrás de impulso, a encomenda contornou o universo, saltou de um eixo temporal para o outro, numa intersecção do emaranhado, e retornou. isto porque, se o tempo não for contínuo, o que forçará o impulso seguinte a permanecer no mesmo eixo que o impulso que o precedeu e deu origem? à semelhança do que se passa com o pequeno electrão. o qual, segundo a mecânica quântica, é a única partícula passível de transitar entre duas posições sem ocupar nenhum espaço intermédio. esta é a minha experiência de pensamento e que deixo aqui para o entretenimento dos mais audazes. uma última nota, para quem possa supor que o espelho cósmico que referi pareça indicar a existência de um semi-eixo (com início, mas sem fim), na verdade trata-se de um cruzamento de eixos, ambos infinitos.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

às crianças

desejo que encontres a felicidade em longos sonhos, quando este implacável mundo não te perdoar o castigo.

terça-feira, 31 de maio de 2011

nevoeiro

nada se distingue em frente.
        no entanto, não está escuro.
a rua é um lugar diferente,
        se se esconde atrás d'um muro.

faça chuva ou faça sol,
        haja um leve ou denso nevoeiro,
esconda-se lá - no farol,
        que o homem chega inteiro.

ainda que as luzes se vão,
        nunca houve uma hora certa,
abraçar a escuridão,
        passear a rua - deserta.

é o crepúsculo, é a alvorada!
        o contorno de um insolente mensageiro?
seja o orvalho da madrugada...
        não, é apenas nevoeiro.

o que faz, o que quer?
        nunca vem para ficar.
mas para o que der e vier,
        o pouco é de aproveitar.

e é tímido - quem diria!
        tomava-o por rude desordeiro.
vai nascer o novo dia,
        vai fugir o nevoeiro!

segunda-feira, 30 de maio de 2011

uma fotografia

- tenho que ser sincera contigo, joão.
- não espero menos de ti. o que se passa?
- nada, não te preocupes. apenas devo dizer-te que não és nada fotogénico.
- a que se deve tal afirmação?
- fui levantar as fotografias ao laboratório. aquelas do rio, sabes?
- sim, sei.
- pronto. estive a vê-las e reparei que tu ficas sempre mal. és mesmo pouco fotogénico!
- estou a ver...
- mas isso é algo bom, na verdade.
- vais ter de me explicar o teu raciocínio.
- significa que és mais bonito na realidade.
- acho que posso tomar isso como uma espécie de elogio.
- e podes ter a certeza de que ninguém jamais ficará desiludido por te ver depois da fotografia.
- já entendi! não podemos todos ser perfeitos como tu, joana.
- não me venhas com a conversa da perfeição outra vez!

sexta-feira, 27 de maio de 2011

é

é a força das marés,
os números de um a dez,
o vento do oriente
e um café bem quente.

é andar em bicos dos pés,
roubar risos de bebés,
um guarda-chuva no verão
e as chaves na palma da mão.

é ficar a ouvir cantar,
saltar e começar a voar,
uma fogueira no chão
e palavras ao coração.

é uma miragem distante,
doce melodia palpitante,
o gelado a derreter
e ainda tanto por fazer.

é um pequeno poema,
outro efémero dilema,
o brilho da alvorada
e uma conversa demorada.

é fitar de mau o céu,
sentar na cadeira do réu,
o pássaro abre a asa
e eu chego finalmente a casa.

é acariciar o cabelo louro,
encontrar um tesouro,
contar uma história
e guardar na memória.

é chamar por um nome,
comer sem fome,
esperar pelo momento
e matar o tormento.

é tocar o veludo,
experimentar de tudo,
viajar sem rumo
e desvanecer em fumo.

é sussurrar ao ouvido,
um presente escondido,
espreitar por um furo
e ter medo do escuro.

é um lápis incolor,
um grito sem terror,
o sorriso de alegria
e a carteira vazia.

é uma lembrança encravada,
a roupa de cama lavada,
personagens do passado
e o peito atravessado.

é uma lágrima latente,
um coração resiliente,
correr sem destino
e sonhar pequenino.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

a perfeição é uma impossível concepção

- joana, alguma vez te disse que te considero a mulher perfeita?
- eu não sou perfeita, joão. nem tu próprio acreditas nas tuas palavras.
- acho que está em causa o conceito que cada um de nós tem de perfeição, mais do que se tu és verdadeiramente, ou não, a mulher perfeita.
- então partilha comigo a tua noção, estou curiosa.
- muito bem, eu vou tentar exprimir-me da melhor maneira que conseguir. há todo um tipo de variedade interminável de coisas às quais o atributo aqui em questão se pode aplicar. proponho centrar unicamente no que toca a pessoas, concordas?
- sim, parece-me um bom ponto de partida. continua.
- antes de tentar balbuciar coisas, provavelmente sem grande sentido, vou tentar argumentar com exemplos.
- estou um pouco apreensiva, mas quero ouvir-te.
- a razão porque penso que és a mulher perfeita centra-se no simples facto de que tu preenches todas as minhas necessidades como homem, tanto físicas como mentais.
- eu dou-te as necessidades físicas...
(risos)
- agrada-me olhar para ti, estejas feliz ou carrancuda. quando saio, estou sempre ansioso para regressar aos teus braços. adoro quando os teus cozinhados dão para o torto e eu, ainda assim, não deixo sobras. jamais quero abandonar os nossos serões de silêncio, frente à televisão desligada.
- estás a criticar os meus cozinhados como argumento a favor de eu ser a mulher perfeita?
- sim, estou. não entendes?
- para mim, se algo é perfeito é porque não tem falhas!
- lá está, joana. temos conceitos de perfeição, pelo menos no que toca às pessoas, diferentes. eu gosto da ideia de existirem pessoas perfeitas. segundo o teu literalismo, tal não seria possível e este seria um mundo repleto de medíocres, e nada mais.
- a tua crença é bonita, no entanto.
- sou flexível.
- não, não és muito...
(risos)
- lá estás tu, sempre a considerar tudo à letra!
- acho que percebi o que queres dizer, mas não significa que concordo contigo.
- tão pouco desejo tal coisa, aprecio estes nossos fóruns de discussão. não és uma pessoa aborrecida.
- pronto. já podemos ligar a televisão?

terça-feira, 24 de maio de 2011

o teu reino escondido ao luar

quem foi que te conheceu,
        no meu reino escondido ao luar?
o que ele te prometeu,
        que eu não era também capaz de dar?

quem foi que se perdeu,
        num mísero e singelo olhar?
quem tocou o que era meu,
        e fugiu antes do meu chegar?

meu amor, foste tu que desertaste
        o teu reino escondido ao luar.
meu amor, porque abandonaste
        o servo com quem te acostumaste brincar?

mas quem foi que te roubou,
        da minha torre virada para o luar?
quem foi ele que te safou,
        do beijo que jamais te vou beijar?

um dia, vais tu olhar para trás,
        com saudades do reino banhado ao luar.
já só peço um pouco de paz,
        no meu túmulo cavado ao pé do mar.

nas noites em que não consigo dormir,
        sinto falta da tua canção de embalar.
condeno-me a daqui nunca partir,
        espero-te no nosso reino escondido ao luar.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

verdadeiro romance ou: o dia em que passei das palavras aos actos

vi-a entrar no café e sentou-se na mesa da frente. eu estava no lugar encostado à janela para poder ver as pessoas serem felizes lá fora na rua. ela sentou-se no lugar simétrico ao meu. que outra razão, se não um interesse óbvio em atormentar a minha pessoa com seduções - pensamentos de luxúria? parei de escrever, a concentração, e pior, a inspiração me abandonaram. senti-me desnorteado, perdido e incomodado. calmamente pousei a caneta e encerrei as páginas, bebi o café de um gole e tentei encher os pensamentos com suposições das vidas que observava pelo vidro. senti calafrios a percorrem a coluna, desde a garganta até à ponta dos pés. aqueles olhos, escondidos feito cobardes atrás dos lábios com batom vermelho, despiam-me publicamente de todas as roupas e máscaras. perfeitamente nu, a pele enrugava com o frio e o passar do tempo, e aquele olhar cada vez mais próximo de mim. como se, num piscar de olhos, a mulher se havia sentado na cadeira da frente da minha mesa. agora a voz dela persegue-me e a sua língua humidifica os flamejantes pedaços de carne que gritam obscenidades ao meu ouvido. agarrou-me a mão e eu não consegui largar. abandonámos aquele lugar tortuoso e fomos para a rua de mãos grudadas. nunca me havia sentido tão desconfortável como naquele preciso momento, tão deslocado e indefeso. apático, segui-a até à porta de uma casa antiga mas perfeitamente estimada. uma casa valiosíssima, de sonho para muitos. entrámos juntos e ouvi-a trancar a porta atrás de nós. não restavam dúvidas, aquela louca mulher desejava-me. haviam muitas divisões, todas ricamente decoradas com as mais bonitas peças e antiguidades. à medida que nos aproximávamos de um quarto, comecei a ouvir um som abafado e periódico. o coração daquela mulher estava a acelerar, a bater com uma intensidade crescente contra as paredes do peito. parecia gritar "possui-me" em pura agonia. temi que a própria terra estremecesse com tão violenta excitação. a única maneira de acalmar tal besta seria satisfazer-lhe o desejo. aceitei a tarefa que tinha em mãos e encontrei harmonia no acto que estava prestes a perpetuar. beijei aquela mulher, abracei-a como só um homem consegue e coloquei o seu corpo sobre a cama que se encontrava encostada à parede. aquele quarto era mais negro que um coração rejeitado numa noite sem luar e nada se distinguia com a excepção da cama que, pela bela composição, se encontrava perfeitamente alinhada com os poucos raios de luz que provinham da pequena janela. depois de a despir, atei-lhe os quatros membros à estrutura que suportava o colchão e também eu retirei as minhas roupas. passei na cozinha uma última vez e retomei o meu lugar no quarto, junto dela. aquele violento coração desistia de bater à medida que a satisfazia de todas as maneiras que me ocorriam. senti-me em paz e uma avassaladora calma apoderou-se de todo o meu ser. como uma sinfonia muda de instrumentos imaginários, o som da faca a dilacerar aquele exposto torso extasiou-me tal droga alucinogénica. havia sangue a jorrar das artérias principais que tentei dilatar com os próprios dedos. senti-me dançar como um miúdo a brincar despreocupado numa fonte do parque. o coração já não batia e a cara daquela mulher não mais me atormentava, os olhos fixavam um ponto acima da testa e gravou-se uma expressão de perfeita dor. continuei a perfurar o peito até que consegui vislumbrar o vil órgão escondido, atrás de costelas estilhaçadas. peguei-lhe com uma única mão e elevei-o ao nível dos olhos. pensei para mim "como é possível algo tão misero levar-me à loucura, privando-me de vontade própria, com uma simples vibração?". coloquei-o na sua mão esquerda, que estava suspensa. tomei um banho e vesti-me voltado para um corpo desprovido de vida, mas repleto de prazer. na minha cabeça fervilhavam ideias. retornei ao café, abri o pequeno caderno e continuei a minha escrita como se tudo tivesse sido um delírio fictício de um olhar não correspondido.

sábado, 21 de maio de 2011

conversa de corações

em conversa metafórica, alguém uma vez questionou se depois de uma perna partida o medo de a tornar a quebrar instaurar-se-ia, impedindo-nos a coragem e a vontade de caminhar novamente. eu pergunto-me, em pensamento intrínseco, se porventura tivesse sido melhor jamais ter provado o prazer de passear o mundo. digam o que disserem e convençam-se daquilo que mais vos convier, mas depois de estilhaçado já nada regressa ao lugar. não como antes, certamente. fosse minha a escolha na altura e eu ainda hoje gatinhava por aí, livre de qualquer prazer e ignorante de toda a dor - graciosamente apático. ah, pudesse eu espreitar o futuro e soubesse o que sei hoje!

quarta-feira, 18 de maio de 2011

meu único bem

felicidade - já possuí alguma,
conheci-lhe o rosto,
toquei-lhe o gosto
e respondeu "sou póstuma".

não quero mais disso,
tristeza vem para ficar,
promete não me abandonar
que eu sou eterno submisso.

tu sim - és de confiança,
estás sempre presente,
ainda que inconsciente,
nesta lágrima - nossa aliança.

para sorrir nunca mais,
o passado - que vergonha!
vil expressão em minha fronha
por palavras tão banais.

tristeza - assola-me o coração,
trespassa-me a alma,
que só o teu silêncio acalma,
e jamais me ergas do chão.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

pequenas inverdades

por vezes, tudo o que é preciso é uma mentira para se conseguir encarar o dia.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

lamento

hoje apercebi-me que o sorriso que não dá para conter, o mais honesto, sincero e espontâneo de um ser humano é simplesmente maravilhoso. é, sem dúvida, uma das maravilhas do universo e património global. é ainda mais bonito que tu e por isso eu lamento.

terça-feira, 10 de maio de 2011

atrás de um sorriso, um segredo e atrás de um segredo, um medo

se há tristeza em mim, há tristeza em ti e existe certamente em todos os outros.
o maior sorriso é, para mim, aquele que esconde segredos que ninguém imagina.
são aqueles que nos assolam mesmo antes de adormecer.
são os que mais desejamos partilhar, mas jamais o faremos.
só nós os conhecemos e só nós percebemos porquê.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

amor sem tempo

ama-me devagar, que o tempo deixa de ser tempo quando não há espaço entre nós.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

perdido na estação de graz

foi na estação de comboios de graz, capital do estado da estíria na áustria, que philipe viu raquel pela primeira vez. na manhã de doze de dezembro, enquanto viajava para encontrar uns amigos em milão, o comboio que o transportava parou brevemente naquela cidade. philipe pousou o livro que o acompanhava, canções de inocência e de experiência por william blake, esfregou os olhos e pestanejou vorazmente. ao espreitar pela janela não conseguiu evitar que o coração disparasse como se de um enorme susto se tratasse, raquel saíra do mesmo comboio onde ele seguia. naquele momento o tempo abrandou, ele aproveitou cada milissegundo para decorar o seu contorno, os ínfimos pormenores do seu cabelo, o jeito de vestir, a maneira de caminhar e, finalmente quando ela se voltou para observar a carruagem partir, a doçura daquele sereno olhar. correu à porta, mas o comboio já havia iniciado a marcha. acompanhou a plataforma, percorrendo vagão a vagão num êxtase crescente, olhando desesperadamente pelas janelas, até que não havia mais solo para percorrer. e ali ficou, colado ao vidro da última carruagem a morrer enquanto lá no fundo raquel desaparecia entre a multidão. o tempo retomou o seu ritmo de passagem e philipe fez uma promessa. "de hoje em diante tenho o meu coração vendado. não descansarei até encontrar aquela mulher! enquanto for vivo e restar em mim um sopro de força irei regressar a este lugar, neste preciso dia e esperarei por todos os comboios, inspeccionado meticulosamente todo o passageiro que pousar pé na plataforma", e assim foi. durante os nove anos seguintes, philipe chegou à estação de graz no dia onze de dezembro e ao virar do dia sentou-se no banco do centro, virado para as linhas. ali ficou a comparar todas as caras que passavam com a fotografia que havia memorizado de raquel até as doze badaladas da meia noite marcarem o fim do dia doze e o começo do dia treze. com o passar do tempo, os trabalhadores vieram a conhecer a sua história e a passa-la como folclore. queriam ajudá-lo a encontrar a mulher que o havia enfeitiçado, mas tudo o que ele sabia sobre ela era sempre a mesma resposta que dava, "eu não sei onde nasceu, os seus gostos e interesses ou mesmo o primeiro nome. sei que veste uma pele cor de neve, um sorriso vermelho vivo, o seu cabelo é de um tom escuro hipnotizante e olhos são pintados de cor de alface. mais importante do que isso, eu sei que um dia um comboio a trouxe a este lugar e desde esse dia eu a amo perdidamente." diziam-lhe que não era saudável ou até mesmo lógico todo aquele amor inexplicável por alguém que nem conhecia, que podia muito bem ser casada. philipe estava consciente das dificuldades que enfrentava, mas tinha de tentar ou arrepender-se até ao último suspiro em vida. foi então que, finalmente, ao novo ano da sua espera, raquel saiu do vagão e pisou a plataforma de graz uma vez mais. estava deslumbrante como ele a lembrava, como se a tivesse visto ontem e nove horas haviam passado ao invés de anos. raquel estava voltada, aguardando a partida do comboio, para o observar a seguir o resto da sua viagem. com o coração a querer irromper do peito, philipe levantou-se devagar, pegou no seu casaco e cautelosamente aproximou-se de raquel. inspirou profundamente, contou até dez e quando se preparava para expirar ela voltou-se, sentindo a presença de alguém. "posso ajudá-lo?", questionou raquel intrigada com philipe. ao longo de todo o tempo que havia esperado, preparou todo um discurso maravilhoso que desvaneceu completamente naquelas melodiosas palavras. sem querer perder mais um segundo, improvisou e falou directamente do coraçao. "olá, o meu nome é philipe e é muito provável que não me conheças. neste mesmo dia, há nove anos atrás eu encontrava-me no comboio com destino a milão. quando parou nesta plataforma, pousei o meu livro, esfreguei os olhos e, quando olhei pela janela, vi-te sair do vagão. voltaste-te para a linha e ficaste a observar o comboio partir. eu tentei sair ali mesmo, mas já se encontrava em marcha. então percorri todos os compartimentos a procurar-te pelas janelas e quando cheguei ao último fiquei a sentir-te partir, cada vez mais longe de mim. desde então que tenho vindo à estação de graz todos os anos neste mesmo dia, na esperança de te reencontrar."

quinta-feira, 5 de maio de 2011

gostar pouco demais

nesta louca paixão fora de si,
permaneces tu ávida e serena,
mas guarda ousadia, mulher morena,
que este coração desiste de ti.

dar-me - para jamais voltar a mim,
em liberdade que tanto sufoca,
agarra, prende e sempre me derroca,
bem lá longe se esconde, sem fim.

minha mãe, que me fala com cantigas,
nestes verdes olhos, imagens belas,
"um dia vais encontrar boas amigas."

ando na chuva de palavras frias,
à espreita entre perdidas janelas
e adormeço com ilusões antigas.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

fiquei a pensar

"és tonto ao teres tanto amor por alguém que nem conheces", disse-me ela no outro dia.

terça-feira, 3 de maio de 2011

cada vez mais

o teu ofegante respirar mata-me,
só de pensar quem te tira esse ar...

segunda-feira, 2 de maio de 2011

o rapaz com o casaco de metal — capítulo I: benjamim

capítulo I: benjamim
benjamim nasceu num hospital de tamanho médio onde os médicos não eram os mais simpáticos ou as enfermeiras as mais rabugentas, igual a tantos outros. não teve sorte nem azar com o pediatra de serviço, de pouco mérito e desastrado, era carinhoso e por pouco não deixou o recém-nascido mergulhar de cabeça frente a uma plateia ansiosa de espectadores com os olhos regalados. os seus progenitores são o que se pode chamar de bons pais, pagam os impostos a tempo e gostam mutuamente um do outro. não é um amor de perdição, mas nunca pairou sobre eles a nuvem do ódio.
na semana seguinte, benjamim é levado para casa. está maravilhado com a beleza do mundo exterior, da qual apenas ouvira falar durante os últimos nove meses. de repente alguém comenta entusiasmado "estamos quase a chegar" e a atenção ferra-se ainda mais sobre aquele que será o seu bairro. algo estranho e inquietante, os jardins dos vizinhos são todos similares. a verdade é que a sua mãe, julieta, é quem cuida da jardinagem da zona. já o seu pai, eduardo, é bancário. o carro pára em frente a uma garagem e a vizinhança é pouco estimulante, similar a muitas outras. não é luxuriosa, pretensiosa ou pobre, mas humilde e corriqueira, rotineira. eduardo cordialmente segura a porta para julieta que carrega benjamim nos braços. aquele espaço é meticulosamente analisado e a conclusão é simples e previsível. trata-se de uma casa mediana, simpática e acolhedora. a entrada é bonita e bem cuidada, mas praticamente idêntica à do vizinho da esquerda.
a verdade é que nem tudo é normal, cinzento e regular. algo de muito peculiar surgiu naquele pequeno refúgio da complicada sociedade moderna e conformada, no dia em que benjamim chegou ao mundo. um corpo estranho que deturpa todo um sólido quotidiano, repetitivo e monótono. desde tenra idade que benjamim demonstra uma elevada aptidão para desvendar padrões que iludem as mentes mais brilhantes. com um ano somente, já soluciona puzzles de dez mil peças em menos de uma hora. aos dois anos já fala consciente e fluentemente. para celebrar o seu terceiro aniversário já datilografa as cartas aos convidados. um ano mais tarde, benjamim escreve tão eloquentemente como julieta e resolve a sua primeira equação matemática. perdida na secretária de eduardo, a solução é-lhe tão óbvia quanto o verde que obtém depois de juntar aguarelas azul e amarela. no entanto, aquela previsão económica há dias que tirava o sono ao seu pai.
ao atingir a idade escolar, benjamim é a novidade das redondezas. proclama Shakespeare de memória e já leu o épico romance Moby Dick por duas vezes. no entanto, Júlio VerneIsaac Asimov são os seus autores de eleição.