terça-feira, 31 de maio de 2011

nevoeiro

nada se distingue em frente.
        no entanto, não está escuro.
a rua é um lugar diferente,
        se se esconde atrás d'um muro.

faça chuva ou faça sol,
        haja um leve ou denso nevoeiro,
esconda-se lá - no farol,
        que o homem chega inteiro.

ainda que as luzes se vão,
        nunca houve uma hora certa,
abraçar a escuridão,
        passear a rua - deserta.

é o crepúsculo, é a alvorada!
        o contorno de um insolente mensageiro?
seja o orvalho da madrugada...
        não, é apenas nevoeiro.

o que faz, o que quer?
        nunca vem para ficar.
mas para o que der e vier,
        o pouco é de aproveitar.

e é tímido - quem diria!
        tomava-o por rude desordeiro.
vai nascer o novo dia,
        vai fugir o nevoeiro!

segunda-feira, 30 de maio de 2011

uma fotografia

- tenho que ser sincera contigo, joão.
- não espero menos de ti. o que se passa?
- nada, não te preocupes. apenas devo dizer-te que não és nada fotogénico.
- a que se deve tal afirmação?
- fui levantar as fotografias ao laboratório. aquelas do rio, sabes?
- sim, sei.
- pronto. estive a vê-las e reparei que tu ficas sempre mal. és mesmo pouco fotogénico!
- estou a ver...
- mas isso é algo bom, na verdade.
- vais ter de me explicar o teu raciocínio.
- significa que és mais bonito na realidade.
- acho que posso tomar isso como uma espécie de elogio.
- e podes ter a certeza de que ninguém jamais ficará desiludido por te ver depois da fotografia.
- já entendi! não podemos todos ser perfeitos como tu, joana.
- não me venhas com a conversa da perfeição outra vez!

sexta-feira, 27 de maio de 2011

é

é a força das marés,
os números de um a dez,
o vento do oriente
e um café bem quente.

é andar em bicos dos pés,
roubar risos de bebés,
um guarda-chuva no verão
e as chaves na palma da mão.

é ficar a ouvir cantar,
saltar e começar a voar,
uma fogueira no chão
e palavras ao coração.

é uma miragem distante,
doce melodia palpitante,
o gelado a derreter
e ainda tanto por fazer.

é um pequeno poema,
outro efémero dilema,
o brilho da alvorada
e uma conversa demorada.

é fitar de mau o céu,
sentar na cadeira do réu,
o pássaro abre a asa
e eu chego finalmente a casa.

é acariciar o cabelo louro,
encontrar um tesouro,
contar uma história
e guardar na memória.

é chamar por um nome,
comer sem fome,
esperar pelo momento
e matar o tormento.

é tocar o veludo,
experimentar de tudo,
viajar sem rumo
e desvanecer em fumo.

é sussurrar ao ouvido,
um presente escondido,
espreitar por um furo
e ter medo do escuro.

é um lápis incolor,
um grito sem terror,
o sorriso de alegria
e a carteira vazia.

é uma lembrança encravada,
a roupa de cama lavada,
personagens do passado
e o peito atravessado.

é uma lágrima latente,
um coração resiliente,
correr sem destino
e sonhar pequenino.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

a perfeição é uma impossível concepção

- joana, alguma vez te disse que te considero a mulher perfeita?
- eu não sou perfeita, joão. nem tu próprio acreditas nas tuas palavras.
- acho que está em causa o conceito que cada um de nós tem de perfeição, mais do que se tu és verdadeiramente, ou não, a mulher perfeita.
- então partilha comigo a tua noção, estou curiosa.
- muito bem, eu vou tentar exprimir-me da melhor maneira que conseguir. há todo um tipo de variedade interminável de coisas às quais o atributo aqui em questão se pode aplicar. proponho centrar unicamente no que toca a pessoas, concordas?
- sim, parece-me um bom ponto de partida. continua.
- antes de tentar balbuciar coisas, provavelmente sem grande sentido, vou tentar argumentar com exemplos.
- estou um pouco apreensiva, mas quero ouvir-te.
- a razão porque penso que és a mulher perfeita centra-se no simples facto de que tu preenches todas as minhas necessidades como homem, tanto físicas como mentais.
- eu dou-te as necessidades físicas...
(risos)
- agrada-me olhar para ti, estejas feliz ou carrancuda. quando saio, estou sempre ansioso para regressar aos teus braços. adoro quando os teus cozinhados dão para o torto e eu, ainda assim, não deixo sobras. jamais quero abandonar os nossos serões de silêncio, frente à televisão desligada.
- estás a criticar os meus cozinhados como argumento a favor de eu ser a mulher perfeita?
- sim, estou. não entendes?
- para mim, se algo é perfeito é porque não tem falhas!
- lá está, joana. temos conceitos de perfeição, pelo menos no que toca às pessoas, diferentes. eu gosto da ideia de existirem pessoas perfeitas. segundo o teu literalismo, tal não seria possível e este seria um mundo repleto de medíocres, e nada mais.
- a tua crença é bonita, no entanto.
- sou flexível.
- não, não és muito...
(risos)
- lá estás tu, sempre a considerar tudo à letra!
- acho que percebi o que queres dizer, mas não significa que concordo contigo.
- tão pouco desejo tal coisa, aprecio estes nossos fóruns de discussão. não és uma pessoa aborrecida.
- pronto. já podemos ligar a televisão?

terça-feira, 24 de maio de 2011

o teu reino escondido ao luar

quem foi que te conheceu,
        no meu reino escondido ao luar?
o que ele te prometeu,
        que eu não era também capaz de dar?

quem foi que se perdeu,
        num mísero e singelo olhar?
quem tocou o que era meu,
        e fugiu antes do meu chegar?

meu amor, foste tu que desertaste
        o teu reino escondido ao luar.
meu amor, porque abandonaste
        o servo com quem te acostumaste brincar?

mas quem foi que te roubou,
        da minha torre virada para o luar?
quem foi ele que te safou,
        do beijo que jamais te vou beijar?

um dia, vais tu olhar para trás,
        com saudades do reino banhado ao luar.
já só peço um pouco de paz,
        no meu túmulo cavado ao pé do mar.

nas noites em que não consigo dormir,
        sinto falta da tua canção de embalar.
condeno-me a daqui nunca partir,
        espero-te no nosso reino escondido ao luar.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

verdadeiro romance ou: o dia em que passei das palavras aos actos

vi-a entrar no café e sentou-se na mesa da frente. eu estava no lugar encostado à janela para poder ver as pessoas serem felizes lá fora na rua. ela sentou-se no lugar simétrico ao meu. que outra razão, se não um interesse óbvio em atormentar a minha pessoa com seduções - pensamentos de luxúria? parei de escrever, a concentração, e pior, a inspiração me abandonaram. senti-me desnorteado, perdido e incomodado. calmamente pousei a caneta e encerrei as páginas, bebi o café de um gole e tentei encher os pensamentos com suposições das vidas que observava pelo vidro. senti calafrios a percorrem a coluna, desde a garganta até à ponta dos pés. aqueles olhos, escondidos feito cobardes atrás dos lábios com batom vermelho, despiam-me publicamente de todas as roupas e máscaras. perfeitamente nu, a pele enrugava com o frio e o passar do tempo, e aquele olhar cada vez mais próximo de mim. como se, num piscar de olhos, a mulher se havia sentado na cadeira da frente da minha mesa. agora a voz dela persegue-me e a sua língua humidifica os flamejantes pedaços de carne que gritam obscenidades ao meu ouvido. agarrou-me a mão e eu não consegui largar. abandonámos aquele lugar tortuoso e fomos para a rua de mãos grudadas. nunca me havia sentido tão desconfortável como naquele preciso momento, tão deslocado e indefeso. apático, segui-a até à porta de uma casa antiga mas perfeitamente estimada. uma casa valiosíssima, de sonho para muitos. entrámos juntos e ouvi-a trancar a porta atrás de nós. não restavam dúvidas, aquela louca mulher desejava-me. haviam muitas divisões, todas ricamente decoradas com as mais bonitas peças e antiguidades. à medida que nos aproximávamos de um quarto, comecei a ouvir um som abafado e periódico. o coração daquela mulher estava a acelerar, a bater com uma intensidade crescente contra as paredes do peito. parecia gritar "possui-me" em pura agonia. temi que a própria terra estremecesse com tão violenta excitação. a única maneira de acalmar tal besta seria satisfazer-lhe o desejo. aceitei a tarefa que tinha em mãos e encontrei harmonia no acto que estava prestes a perpetuar. beijei aquela mulher, abracei-a como só um homem consegue e coloquei o seu corpo sobre a cama que se encontrava encostada à parede. aquele quarto era mais negro que um coração rejeitado numa noite sem luar e nada se distinguia com a excepção da cama que, pela bela composição, se encontrava perfeitamente alinhada com os poucos raios de luz que provinham da pequena janela. depois de a despir, atei-lhe os quatros membros à estrutura que suportava o colchão e também eu retirei as minhas roupas. passei na cozinha uma última vez e retomei o meu lugar no quarto, junto dela. aquele violento coração desistia de bater à medida que a satisfazia de todas as maneiras que me ocorriam. senti-me em paz e uma avassaladora calma apoderou-se de todo o meu ser. como uma sinfonia muda de instrumentos imaginários, o som da faca a dilacerar aquele exposto torso extasiou-me tal droga alucinogénica. havia sangue a jorrar das artérias principais que tentei dilatar com os próprios dedos. senti-me dançar como um miúdo a brincar despreocupado numa fonte do parque. o coração já não batia e a cara daquela mulher não mais me atormentava, os olhos fixavam um ponto acima da testa e gravou-se uma expressão de perfeita dor. continuei a perfurar o peito até que consegui vislumbrar o vil órgão escondido, atrás de costelas estilhaçadas. peguei-lhe com uma única mão e elevei-o ao nível dos olhos. pensei para mim "como é possível algo tão misero levar-me à loucura, privando-me de vontade própria, com uma simples vibração?". coloquei-o na sua mão esquerda, que estava suspensa. tomei um banho e vesti-me voltado para um corpo desprovido de vida, mas repleto de prazer. na minha cabeça fervilhavam ideias. retornei ao café, abri o pequeno caderno e continuei a minha escrita como se tudo tivesse sido um delírio fictício de um olhar não correspondido.

sábado, 21 de maio de 2011

conversa de corações

em conversa metafórica, alguém uma vez questionou se depois de uma perna partida o medo de a tornar a quebrar instaurar-se-ia, impedindo-nos a coragem e a vontade de caminhar novamente. eu pergunto-me, em pensamento intrínseco, se porventura tivesse sido melhor jamais ter provado o prazer de passear o mundo. digam o que disserem e convençam-se daquilo que mais vos convier, mas depois de estilhaçado já nada regressa ao lugar. não como antes, certamente. fosse minha a escolha na altura e eu ainda hoje gatinhava por aí, livre de qualquer prazer e ignorante de toda a dor - graciosamente apático. ah, pudesse eu espreitar o futuro e soubesse o que sei hoje!

quarta-feira, 18 de maio de 2011

meu único bem

felicidade - já possuí alguma,
conheci-lhe o rosto,
toquei-lhe o gosto
e respondeu "sou póstuma".

não quero mais disso,
tristeza vem para ficar,
promete não me abandonar
que eu sou eterno submisso.

tu sim - és de confiança,
estás sempre presente,
ainda que inconsciente,
nesta lágrima - nossa aliança.

para sorrir nunca mais,
o passado - que vergonha!
vil expressão em minha fronha
por palavras tão banais.

tristeza - assola-me o coração,
trespassa-me a alma,
que só o teu silêncio acalma,
e jamais me ergas do chão.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

pequenas inverdades

por vezes, tudo o que é preciso é uma mentira para se conseguir encarar o dia.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

lamento

hoje apercebi-me que o sorriso que não dá para conter, o mais honesto, sincero e espontâneo de um ser humano é simplesmente maravilhoso. é, sem dúvida, uma das maravilhas do universo e património global. é ainda mais bonito que tu e por isso eu lamento.

terça-feira, 10 de maio de 2011

atrás de um sorriso, um segredo e atrás de um segredo, um medo

se há tristeza em mim, há tristeza em ti e existe certamente em todos os outros.
o maior sorriso é, para mim, aquele que esconde segredos que ninguém imagina.
são aqueles que nos assolam mesmo antes de adormecer.
são os que mais desejamos partilhar, mas jamais o faremos.
só nós os conhecemos e só nós percebemos porquê.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

amor sem tempo

ama-me devagar, que o tempo deixa de ser tempo quando não há espaço entre nós.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

perdido na estação de graz

foi na estação de comboios de graz, capital do estado da estíria na áustria, que philipe viu raquel pela primeira vez. na manhã de doze de dezembro, enquanto viajava para encontrar uns amigos em milão, o comboio que o transportava parou brevemente naquela cidade. philipe pousou o livro que o acompanhava, canções de inocência e de experiência por william blake, esfregou os olhos e pestanejou vorazmente. ao espreitar pela janela não conseguiu evitar que o coração disparasse como se de um enorme susto se tratasse, raquel saíra do mesmo comboio onde ele seguia. naquele momento o tempo abrandou, ele aproveitou cada milissegundo para decorar o seu contorno, os ínfimos pormenores do seu cabelo, o jeito de vestir, a maneira de caminhar e, finalmente quando ela se voltou para observar a carruagem partir, a doçura daquele sereno olhar. correu à porta, mas o comboio já havia iniciado a marcha. acompanhou a plataforma, percorrendo vagão a vagão num êxtase crescente, olhando desesperadamente pelas janelas, até que não havia mais solo para percorrer. e ali ficou, colado ao vidro da última carruagem a morrer enquanto lá no fundo raquel desaparecia entre a multidão. o tempo retomou o seu ritmo de passagem e philipe fez uma promessa. "de hoje em diante tenho o meu coração vendado. não descansarei até encontrar aquela mulher! enquanto for vivo e restar em mim um sopro de força irei regressar a este lugar, neste preciso dia e esperarei por todos os comboios, inspeccionado meticulosamente todo o passageiro que pousar pé na plataforma", e assim foi. durante os nove anos seguintes, philipe chegou à estação de graz no dia onze de dezembro e ao virar do dia sentou-se no banco do centro, virado para as linhas. ali ficou a comparar todas as caras que passavam com a fotografia que havia memorizado de raquel até as doze badaladas da meia noite marcarem o fim do dia doze e o começo do dia treze. com o passar do tempo, os trabalhadores vieram a conhecer a sua história e a passa-la como folclore. queriam ajudá-lo a encontrar a mulher que o havia enfeitiçado, mas tudo o que ele sabia sobre ela era sempre a mesma resposta que dava, "eu não sei onde nasceu, os seus gostos e interesses ou mesmo o primeiro nome. sei que veste uma pele cor de neve, um sorriso vermelho vivo, o seu cabelo é de um tom escuro hipnotizante e olhos são pintados de cor de alface. mais importante do que isso, eu sei que um dia um comboio a trouxe a este lugar e desde esse dia eu a amo perdidamente." diziam-lhe que não era saudável ou até mesmo lógico todo aquele amor inexplicável por alguém que nem conhecia, que podia muito bem ser casada. philipe estava consciente das dificuldades que enfrentava, mas tinha de tentar ou arrepender-se até ao último suspiro em vida. foi então que, finalmente, ao novo ano da sua espera, raquel saiu do vagão e pisou a plataforma de graz uma vez mais. estava deslumbrante como ele a lembrava, como se a tivesse visto ontem e nove horas haviam passado ao invés de anos. raquel estava voltada, aguardando a partida do comboio, para o observar a seguir o resto da sua viagem. com o coração a querer irromper do peito, philipe levantou-se devagar, pegou no seu casaco e cautelosamente aproximou-se de raquel. inspirou profundamente, contou até dez e quando se preparava para expirar ela voltou-se, sentindo a presença de alguém. "posso ajudá-lo?", questionou raquel intrigada com philipe. ao longo de todo o tempo que havia esperado, preparou todo um discurso maravilhoso que desvaneceu completamente naquelas melodiosas palavras. sem querer perder mais um segundo, improvisou e falou directamente do coraçao. "olá, o meu nome é philipe e é muito provável que não me conheças. neste mesmo dia, há nove anos atrás eu encontrava-me no comboio com destino a milão. quando parou nesta plataforma, pousei o meu livro, esfreguei os olhos e, quando olhei pela janela, vi-te sair do vagão. voltaste-te para a linha e ficaste a observar o comboio partir. eu tentei sair ali mesmo, mas já se encontrava em marcha. então percorri todos os compartimentos a procurar-te pelas janelas e quando cheguei ao último fiquei a sentir-te partir, cada vez mais longe de mim. desde então que tenho vindo à estação de graz todos os anos neste mesmo dia, na esperança de te reencontrar."

quinta-feira, 5 de maio de 2011

gostar pouco demais

nesta louca paixão fora de si,
permaneces tu ávida e serena,
mas guarda ousadia, mulher morena,
que este coração desiste de ti.

dar-me - para jamais voltar a mim,
em liberdade que tanto sufoca,
agarra, prende e sempre me derroca,
bem lá longe se esconde, sem fim.

minha mãe, que me fala com cantigas,
nestes verdes olhos, imagens belas,
"um dia vais encontrar boas amigas."

ando na chuva de palavras frias,
à espreita entre perdidas janelas
e adormeço com ilusões antigas.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

fiquei a pensar

"és tonto ao teres tanto amor por alguém que nem conheces", disse-me ela no outro dia.

terça-feira, 3 de maio de 2011

cada vez mais

o teu ofegante respirar mata-me,
só de pensar quem te tira esse ar...

segunda-feira, 2 de maio de 2011

o rapaz com o casaco de metal — capítulo I: benjamim

capítulo I: benjamim
benjamim nasceu num hospital de tamanho médio onde os médicos não eram os mais simpáticos ou as enfermeiras as mais rabugentas, igual a tantos outros. não teve sorte nem azar com o pediatra de serviço, de pouco mérito e desastrado, era carinhoso e por pouco não deixou o recém-nascido mergulhar de cabeça frente a uma plateia ansiosa de espectadores com os olhos regalados. os seus progenitores são o que se pode chamar de bons pais, pagam os impostos a tempo e gostam mutuamente um do outro. não é um amor de perdição, mas nunca pairou sobre eles a nuvem do ódio.
na semana seguinte, benjamim é levado para casa. está maravilhado com a beleza do mundo exterior, da qual apenas ouvira falar durante os últimos nove meses. de repente alguém comenta entusiasmado "estamos quase a chegar" e a atenção ferra-se ainda mais sobre aquele que será o seu bairro. algo estranho e inquietante, os jardins dos vizinhos são todos similares. a verdade é que a sua mãe, julieta, é quem cuida da jardinagem da zona. já o seu pai, eduardo, é bancário. o carro pára em frente a uma garagem e a vizinhança é pouco estimulante, similar a muitas outras. não é luxuriosa, pretensiosa ou pobre, mas humilde e corriqueira, rotineira. eduardo cordialmente segura a porta para julieta que carrega benjamim nos braços. aquele espaço é meticulosamente analisado e a conclusão é simples e previsível. trata-se de uma casa mediana, simpática e acolhedora. a entrada é bonita e bem cuidada, mas praticamente idêntica à do vizinho da esquerda.
a verdade é que nem tudo é normal, cinzento e regular. algo de muito peculiar surgiu naquele pequeno refúgio da complicada sociedade moderna e conformada, no dia em que benjamim chegou ao mundo. um corpo estranho que deturpa todo um sólido quotidiano, repetitivo e monótono. desde tenra idade que benjamim demonstra uma elevada aptidão para desvendar padrões que iludem as mentes mais brilhantes. com um ano somente, já soluciona puzzles de dez mil peças em menos de uma hora. aos dois anos já fala consciente e fluentemente. para celebrar o seu terceiro aniversário já datilografa as cartas aos convidados. um ano mais tarde, benjamim escreve tão eloquentemente como julieta e resolve a sua primeira equação matemática. perdida na secretária de eduardo, a solução é-lhe tão óbvia quanto o verde que obtém depois de juntar aguarelas azul e amarela. no entanto, aquela previsão económica há dias que tirava o sono ao seu pai.
ao atingir a idade escolar, benjamim é a novidade das redondezas. proclama Shakespeare de memória e já leu o épico romance Moby Dick por duas vezes. no entanto, Júlio VerneIsaac Asimov são os seus autores de eleição.

domingo, 1 de maio de 2011

o olá foi embora sem deixar adeus

penso que não me engano se afirmar que todos temos pessoas conhecidas que cumprimentamos sempre que passamos próximo o suficiente um do outro, na rua, no café ou com outros amigos. não temos confiança suficiente para uma conversa aprofundada, quando muito um "como tens passado?" e pouco mais. já nem nos lembra como tudo começou, apenas se tornou um hábito, talvez mesmo uma obrigação, sempre que virmos aquela pessoa há que disparar um "olá" ainda que a medo, entre os dentes. chega uma altura em que perde todo o sentido, toda a razão de ser. nessa altura já nem a graça da timidez resiste e questiona-se a acção. começa-se a ter medo de encontrar a tal pessoa, a interrogar-se como reagir "devo dizer algo?" e simplesmente torna-se estranho. de facto, podia ter sido engraçado no início mas agora é puramente constrangedor. mas vá, a pouco e pouco lá vem o sorriso forçado até ao dia em que falha. parou uma vez, parou para sempre. o "olá" foi-se embora sem deixar rasto, um bilhete ou um último adeus.