quarta-feira, 17 de junho de 2015

Celeste (V)

tu foste linda e jovem em demasia,
foste tudo o que eu podia querer,
razão do meu respirar, de viver,
levantar, sair e enfrentar o dia...

quem assim te fez era rei ou mago,
era deus próprio, se deus existisse,
só não te quis, quem antes não te visse
nos braços da paixão onde eu te trago.

salva-me às garras de insanidade
que me levaram à louca vontade
de rasgar c'os abraços que me deste.

enterrei o teu corpo no jardim
e, de súbito, regressou a mim
o som, esse dom, meu amor — Celeste!

Celeste (IV)

a sombra que lanço sobre os vidrais,
encobertos p'ra não se ver o dia,
cuja luz me traz tamanha agonia,
faz pena aos seres celestiais.

tanto tarda em chegar a madrugada
que o desespero se instaura agora,
pouco depois da fatídica hora
em que te encontrei suja e desgraçada.

esse sorriso era p'ra mim precioso,
tal como era o teu amor duvidoso
ou como no sonho em que, p'ra mim, vieste.

não sei como pude eu ser capaz
p'ra fazer o que a paixão nunca faz —
apagar esse teu nome — Celeste!

Celeste (III)

haverá quem, p'la voz da ditadura
ouse ditar-me fim ao sofrimento,
que tanto necessito e não lamento,
que se sente mais forte que a brandura?

no silêncio, os murmúrios do além,
em mim, a sombra fazem descender,
c'o lumiar que se parece estender
da vela que tanto arde por ninguém.

na quase escuridão só sobro eu
e tudo resto contigo morreu,
todo o bem, todo o mal que me fizeste...

nem o negro firmamento é tão frio,
o vácuo consegue ser mais vazio
que o lugar desse teu nome — Celeste!

Celeste (II)

nas noites de tormento e de trovão,
ainda oiço palpitar fortemente
os ecos desse coração latente
que se perdeu nas margens de plutão.

nem lá fora, o silêncio c'os seus uivos
consegue, em mim, causar maior terror
que aquele me fez, em tempos, o amor,
quando me perdi em teus cabelos ruivos.

vozes que vêm do porão são loucas,
as memórias que me restam tão poucas —
ínfimas como os beijos que me deste.

já só resto eu e o teu candelabro
neste momento sóbrio e macabro
em que lembro desse nome — Celeste!

Celeste (I)

longa era a sombra sobre o meu regaço,
em mim, lançada p'lo teu castiçal,
no tecto, a balançar como um sinal
da tua voz ou do álcool no bagaço.

de costas voltadas p'rá fraca luz,
o sal das lágrimas rasgou na cara
uma fissura que nunca mais sara
p'ra ver os demónios que nunca expus.

porque mantenho a janela fechada,
o dia ou a noite, p'ra mim, são nada
como o ar frio e gélido de oeste.

a morte é o meu estado corrente
e morrer seria sentir novamente,
no peito, ecoar o teu nome — Celeste!

domingo, 14 de junho de 2015

em segredo

p'ra que te pudesse ver p'la alvorada,
nas horas já se perdia longa a noite,
quando o meu peito sofreu o açoite
da tua boca que murmurava nada.

quanto da nossa noite mal amada
se fez estéril campo de batalha
p'ra que, lá do cimo da tua muralha,
permaneças imóvel e calada?

no teu jeito de criança abandonada,
p'ra ti, não passo de um mero brinquedo
que aquece numa noite mais gelada.

já nem sei se isto é hábito ou medo,
sou a tua companhia da madrugada,
porque tu só me queres em segredo.

sábado, 13 de junho de 2015

não tentar

não tentar é desistir por defeito,
é falhar tendo a vitória p'los ombros,
é contentar-se no meio de escombros,
porque a coragem nunca encheu o peito.

é querer e guardá-lo num segredo,
é sonhar que se grita, berra e canta
todas as frases presas na garganta,
ao menos, se não se tivesse medo.

é ter-te comigo sempre presente
como só cobarde conseguiria
p'ra nunca to dizer abertamente.

sonho contigo a cada noite e dia
que me lamento de estar tão doente
deste flagelo que é só cobardia.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

fizesse eu da imaginação realidade

não gosto de introduções. gosto de pensar que, entre nós, não é, nunca foi e jamais serão necessárias introduções. sonho que fomos dados a conhecer um ao outro bem antes de darmos o primeiro suspiro. tenho mil e uma teorias sobre como isso é possível contra todas as evidências de que não é. ainda assim, eu acredito. é nisto que eu acredito. é a minha religião, a minha força de viver, a minha vontade para sair da cama. abro as persianas à espera que o raiar do sol te traga de empurrão ou a gota de uma nuvem te carregue como uma embalagem preciosa. à noite, andas tu perdida a semear, em meus sonhos, alegrias. alegrias essas que se transformam em memórias que, por mais falsas que sejam, são o melhor dos meus dias. pudesse eu explicar-te a dor que sinto ao acordar e perceber que é tudo um sonho. um sonho carregado de outros tantos sonhos e cada um está ferrado com unhas e dentes em mim. como eu gostava de conseguir fazer entender que, por mais que magoem, a dor de os remover de mim seria excruciante ao ponto da morte. não a morte física, mas a morte da alma. a morte para a qual morrer é uma benção. tudo isto eu escrevo, tudo isto eu sonho, tudo isto eu conjuro e soletro símbolo a símbolo. deixo aqui um pouco do tu que há em mim. na verdade, sou eu. tudo isto sou eu e toda tu és minha, mas não no sentido que me traria prazer infinito. és a minha criação, a minha doce fuga da realidade, quando tudo o que eu mais quero é um pouco de coragem. só um pouco mais de coragem para sair da fantasia e correr para ti, onde tu estás de verdade, mas não esperas por mim. não me reconhecerias como eu te reconheceria, como se te tivesse visto horas antes. quiçá nem te lembra a minha existência e sou nada mais que uma pedra fora do lugar na calçada por onde passas uma vez, porque te perdeste pela cidade a pensar noutra coisa qualquer. quem me dera ser essa coisa qualquer, quem me dera ser a tua colher, quem me dera que pensasses em mim. eu só queria que pensasses em mim numa fracção de uma fracção daquilo que eu penso em ti. não acreditas, mas essa quantidade ínfima é um oceano que se estende para lá do horizonte que o horizonte tem. agora, vou adormecer uma vez mais e encontrar-te onde te guardei. espero o dia em que não te encontro nos meus sonhos, mas entre os lençóis que abro de manhã.