quarta-feira, 20 de agosto de 2014

andorinha

tanto sono e não consigo parar,
quero andar sem me mover,
tenho tanto para desejar,
se me libertar para o querer.

hoje, o céu fez-se fusco
e iluminou-te sem vontade
e o vento, de tão brusco,
entornou tua vaidade.

haja alma que te acuda
com a maior da bondade,
já que a voz, feita muda,
pouco clama por liberdade.

que gaiola de cristal
te enclausurou, passarinho?
quem ousou fazer-te mal
e roubar o teu caminho?

só quem não te viu voar
é capaz da atrocidade
de impedir o teu bailar
entre o mar e a cidade.

ainda guardo esse sonho
de passear à beira mar
e olhar o céu, risonho,
à espera de te encontrar.

o sol põe-se a oeste
e leva consigo a esperança
que o beijo que me deste
foi mais que uma lembrança.

é nas margens da amargura
que eu morro da saudade
que escorre pela fissura
que causou tua liberdade.

esse monstro teu sou eu,
que cedo te cortei o voo
no direito que não era meu
com o acto que não perdoo.

ó andorinha, foge de mim
e leva o teu bailar encantado,
que eu sou velho e ruim
e tenho o coração conspurcado.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

vazio, desejo, amor e lembranças

há vazio, sim, há vazio
e todo eu sou um nada,
a minha alma está parada
pelo frio, sim, pelo frio.

sinto desejo, sim, desejo
de te invadir e conquistar o peito,
que tudo fez, com falta de jeito,
por um beijo, sim, um beijo.

falta amor, sim, falta amor
não só no meu eu profundo,
em todas as pessoas do mundo
falta calor, sim, falta calor.

tenho lembranças, sim, lembranças
da vida que costumavas usar
e tudo se vai, se me deixas tocar,
as tuas tranças, sim, tuas tranças.

sábado, 9 de agosto de 2014

a pessoa que eu mais admiro

a pessoa que eu mais admiro não é, no sentido lato da palavra, uma pessoa. são duas pessoas e essas são o meu pai e a minha mãe. digo-o de coração e não como uma oração decorada, porque fica bem dizer ao domingo (e nem domingo é). é um facto da qual já me tinha apercebido — no fundo sempre soube — mas que, hoje, me atingiu de raspão.
admiro a minha mãe pela força extrema com que — esta mulher tão frágil — enfrentou o mundo durante mais de meio século. aturou as minhas atitudes deploráveis, as minhas rebeldias inoportunas, afastou os meus medos e nunca me julgou. isto no que diz respeito à minha pessoa, porque ainda tem força para sorrir. ainda encontra maneira de alimentar os músculos faciais, depois de toda a gente a ter calcado — eu inclusive e não me orgulho disso.
admiro o meu pai. sim, sobretudo, admiro o meu pai. apesar de não ter tido um bom começo familiar e de muito ter magoado a minha mãe. ainda que nunca a mim directamente, eu sinto empáticamente o sofrimento dela e quiçá seja mais rancoroso. ao contrário do que possa parecer, admiro-o muito mais por essa mesma razão. admiro-o, porque mudou.
o meu pai é uma daquelas pessoas de quem é impossível não gostar e talvez (ou de certeza) eu tenha alguma inveja ou ciúme dessa característica que, infelizmente, não herdei. eu não consigo ser como ele, sou bastante fácil de desprezar. o meu pai dá-se com toda a gente, de todas as classes sociais, e é o mesmo homem em qualquer situação. se, num momento, estiver a apertar a mão ao presidente da câmara, no seguinte está a cumprimentar o arrumador de carros que é lá ta terra da mulher (a minha mãe) e não se importa que o primeiro homem o veja com o segundo. pelo contrário, penso que até os apresentaria do seguinte modo "este é o meu amigo, o presidente da câmara," e depois "este é o meu amigo, o arrumador de carros," concluindo com "é lá da terra da minha mulher!" sim, para ele, são todos amigos e trata-os como tal. eu, por culpa do envenenamento mediático — ou, simplesmente, porque sou uma pessoa diferente — tenho certas dúvidas de que agiria da mesma forma.
vou só dar um exemplo de uma atitude típica do meu pai com a qual eu consigo relacionar-me. estávamos numa esplanada e uma das pessoas diz para o meu pai pedir um aperitivo extra, de borla, uma vez que ele conhece e trata por tu os donos do lugar. o meu pai levanta-se, pede um aperitivo extra para ele e outro para a pessoa que pediu — e paga ambos. a pessoa não se apercebeu e o meu pai não contou, sabendo perfeitamente de que lhe ofereceriam o dito aperitivo à borla, se assim o tivesse pedido.
a verdadeira amizade está em nunca nos fazermos valer dela, até ao momento em que mais ninguém nos pode acudir. nesse momento, contudo, não será necessário pedir — já lá estarão os amigos.
esta não é uma carta a ninguém, no sentido de que tem destinatários bem definidos. contudo, não quero que estes mesmos a leiam. assim, fica aqui solta e guardada. só espero, continuamente trabalhando para isso, poder um dia chegar aos calcanhares destas pessoas que me geraram, criaram e ainda aturam. se isso acontecer, então poderei ter algum orgulho na pessoa em que me tornei. até lá, sou imperfeito — mas em remodelação, com os melhores moldes que poderia pedir.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

minha inês de castro

há, neste mundo, quem largasse tudo pela promessa vã de uma visão tua.
há, neste mundo, um coração mudo cuja voz esquecida no ar flutua.