quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

o dia chegou ao fim

há poucas horas atrás, ainda era de manhã, o sol estava vigoroso e a noite aposentava-se. sem dar satisfações, chegou o meio-dia, esgueirou-se por entre o orvalho e devorou-o. almoçámos, lavámos os dentes, tomámos café e partimos na aventura da tarde. o que aconteceu entretanto? não sei, mas a noite está a acordar e o dia chegou ao fim. tão rapidamente como começou, parte rumo ao amanhã. é hora de resumir os acontecimentos recentes, organizar as fotografias capturadas, rir com os filmes gravados. já cheira a jantar, aquele aroma que desperta o ronronar da fome nos atrai para o lugar atrás da loiça e dos talheres. encanta-nos a cor das saladas, a textura dos acompanhamentos, a condensação nos copos. também já passou, chegou o momento de adocicar o dia com uma calórica sobremesa. os mais elegantes entretêm-se com uma fresca peça de fruta. um livro, um pouco de televisão, um serão na internet, um café com amigos e é hora de também nós dizermos adeus ao hoje. adeus, amanhã é dia de amanhã.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

a voz no peito

não sou apenas mais um homem,
cuja coragem escoa lentamente
e a passagem do tempo se torna evidente.
para quem ousas olhar tu dessa maneira?
não compreendo o teu modo de pensar,
mas quem me dera poder adivinhar.
sinto um calor luminescente no meu peito,
uma fúria incontrolável de nada controlar,
que tudo escorre entre os dedos, evapora no ar.
os planos concretizados, impressos no papel,
quem tem vontade de os realizar na verdade?
são só malabarismo de cantar a vaidade.
admite que, também tu, olhas sem nunca ter olhado,
repetes as palavras que só tu queres ouvir,
sentas-te ao lado de quem te faça rir.
a cópia da pessoa em que te tornas,
em nada se assemelha ao texto original,
a ponto e ponto, uma nova obra marginal.
em mim, acabaram-se as páginas antes das palavras,
já não há espaço em branco por preencher,
encostar a tinta, agora é só viver por viver.
às linhas da frente quem me domine a ânsia!
que me rouba os dias de ver
e o tempo lentamente passa a correr.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

é manhã

está um gelo lá fora, eu sei-o e sinto-o. apesar de estar envolto em ti, com o calor conjugado dos nossos corpos despidos, eu olho e vejo o frio que faz no exterior. o céu veste um cinzento claro e baço, não se vê o sol, não se vê uma nuvem, vêem-se mil e uma gotas que se precipitam sobre nós e acabam por falhar a missão ao embaterem no vidro da janela. que inverno perfeito, que manhã gloriosa esta, onde todas as forças do universo culminam no epicentro dos teus lençóis de flanela para nos manter entrelaçados. o que se passou na noite foi o nosso sonho, agora experimentamos as consequências das nossas acções irracionais. têm um leve travo a mel, apetece repetir os actos irresponsáveis. viajo e exploro o teu corpo rosado e vulnerável. descubro a textura aliciante da tua pele, as curvas que se dobram deliciosamente para construir a silhueta do teu corpo, as irregularidades que fazem de ti única. o mais mágico é o nosso silencio que tudo diz com clareza e certeza, faz-se acompanhar da suave percussão da chuva no plano de fundo. os cabelos que cobrem a almofada e se emaranham em fitas que escondem um sorriso sonolento e um "bom dia" a medo. um abraço, um penúltimo abraço eterno à vontade de nunca partir. alguém se levanta e, de imediato, a pele se contrai e um arrepio percorre o corpo da cabeça aos pés, o corpo nu é iluminado por todo aquele brilho fusco que emana lá de fora por entre as cortinas. já cheira a leite quente e torradas com manteiga.

domingo, 9 de janeiro de 2011

pensar

o que é isto, o que será?
um pensamento, uma ideia vã.
espera, espera que ela volta,
ela volta e trás-te revolta.
que bom que é pensar,
e pensar sem sequer pensar!
deambular numa memória à solta,
preparar as mãos para a recolta.
chegar a casa ao fim do dia,
pensar que foi tudo uma alegria.
pensar por pensar, só porque sim,
faz do pensamento um verdadeiro arlequim.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

o rapaz que adorava espreitar

 
que rapaz mais traquina, aquele que mora no quinto andar,
ninguém o ouve, ninguém o vê, mas ele está lá a espreitar.
sozinho nos arrumos do prédio, sem pai, sem mãe, sem avô,
uma vez, a meio da tarde, a porteira a sua história contou.
no início da construção, a mãe era advogada e o pai engenheiro,
a criança ia com os trabalhadores imaginar um recreio.
a esconder, a espreitar, o rapaz quis um pássaro apanhar,
e lá bem no alto, numa viga se começou a empoleirar.
aquela imagem dramática, chegou aos olhos do chefe pedreiro,
instalou-se o pânico e todos gritaram "não é o filho do engenheiro?"
num vozeirão muito imponente, ouviu-se "sai já daí, bernardino!"
mas aquele som estridente fez tremer o menino.
o pai chamou, a mãe desmaiou, o menino chorou, o pássaro voou,
do bolso, a porteira um lenço tirou e o seu nariz assoou.
empolgados, os inquilinos inclinaram-se para ouvir,
então a porteira disse "ele está aqui e está a sorrir!"
muitos foram os que subiram para tentar acudir o rapaz,
mas verdade seja dita que já não há homem audaz.
despe o pai o fato, pega no capacete, faz-se ao terreno,
entra na brincadeira e diz "vem soldado, eu te ordeno!"
o senhor do terceiro direito interrompe "foi só o que aconteceu?",
a porteira reclama "tenha calma, é óbvio que alguém morreu!"
o menino nos braços, sorrisos nas caras, a viga era insegura, o pai cai,
a mãe, de esgotante desgosto, é internada e nunca mais sai.
esta é a triste história do rapaz que adorava espreitar lugares,
ele costuma dizer "podem mentir e enganar, mas nunca com olhares!"
os curiosos ouvintes inquiriram "mas não mencionou a sua avó!"
e a simpática porteira retorquiu "também nunca disse que estava só."