quarta-feira, 19 de outubro de 2011

apenas isto e nada mais

o dia era uma dualidade de sabores, gélido na penumbra e caloroso perante os escassos raios de sol. sentei-me na sombra a fitar o infinito, como se o pudesse, de facto, enxergar. pensei em mil assuntos diferentes e nas respostas a que a todos dar. franzi as sobrancelhas, pois a radiação era, ainda assim, demasiado intensa para mim. nem a escuridão a permite suportar. ela veio, intrigada, até mim e sem "olá" me quis assim inquirir "não está frio, neste lugar onde estás?" e eu gentilmente retorqui "não tanto quanto no meu coração, onde ainda flui para dentro de mim algum calor desta frígida região." no entanto, tal não foi o suficiente para apaziguar a sua inquietude e ela continuou "o que fazes tão só e estático a admirar o eterno vazio?" ao ouvir estas palavras, só consegui admitir "esperava este momento, em que vinhas ter comigo."

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

o buraco cresce

a noite não tarda para o homem sem sono,
ou para aquele que de si já não é dono.
como a boca da gorda mulher que tudo engole,
assim é o buraco que cresce no tecido mole.
anoitece no mundo que te pertenceu um dia,
onde olham para trás e questionam "quem diria?"
apetece arrancar essa carne que tanto satisfaz,
nos ousados sonhos em que se é mais audaz.
a melodia que esboçam teus cabelos no vento,
corrói a essência das palavras que vêm de dentro.
quem foi que te encontrou só para te devolver,
ao lado do homem morto que o é sem o saber?
silêncio - já te perdeste uma vez sem voltar,
a escuridão apagou o teu infame brilho luar.
já não bate o relógio da indeterminada espera,
és uma presa indefesa entre os dentes da fera.
salta as paredes da morte num feixe de luz,
o teu charme de outrora já não seduz.
o buraco cresce e tu dormes na margem,
viver já não detém qualquer vantagem.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

o rapaz com o casaco de metal — capítulo IV: morte ao herói

anabela foi a primeira a acusar benjamim. alguém capaz de se separar do seu bem mais precioso, sem importar às consequências, mais ainda o seria de fazer a outros - por quem não nutre qualquer emoção. benjamim ouviu tais palavras pela grosseira voz de um polícia, aquando da sua detenção preventiva. de facto, não havia uma alma que não apontasse o dedo, com a certeza que a autoria dos consecutivos mórbidos crimes pertencia a mais ninguém do que o estranho rapaz do casaco de metal. os seus pais depuseram contra ele. assim o fizeram todos os que o conheciam directa ou indirectamente, desde os vizinhos, professores, colegas até aos próprios avós. como sempre se revelou um rapaz peculiar, fora do normal e emaranhado em atitudes obscuras, ninguém sofreu de surpresa pelas acusações que se abateram sobre ele. temiam a sua excentricidade, desde o momento em que começou a usar o seu fantástico casaco. não compreendiam a sua genialidade, nem o professor de matemática - que era doutorado. na verdade, benjamim era - e sempre o foi - um rapaz bastante humilde, honesto e bom. pode dizer-se que a fatalidade do seu destino se relaciona directamente com a bondade e ingenuidade que residiam no seu coração. pairava sobre a comunidade a pergunta "como foi capaz de remover o próprio coração?" e benjamim intrigava-se sobre "como nunca o foram eles, que proclamam amar cônjuges, familiares e amigos, capazes de ofertar a palpitação tangível desse amor?". as palavras significam o vácuo do universo, sem acções que as materializem - ele acreditava. sobre a sua imputação de culpa, nunca teceu qualquer comentário. os interrogatórios eram preenchidos por berros unilaterais e monótonos monólogos policiais. benjamim extrapolava-se para longe do seu corpo e observava todo o circo que o rodeava. chegou a achar tal situação bastante divertida, por vezes. a comunidade reuniu-se de emergência, face ao elevado número de corações em falta. condenaram-no bem antes de se iniciar qualquer discussão. a sentença era nada mais do que a própria vida. um dos guardas encarregues da vigia sobre benjamim participou em tal agregação. a revelação da sua condição de falso coração pela anabela selou a sequência dos acontecimentos que se seguiram. não decorreram duas noites e, pela calada da noite - nunca se descobriu quem, mas toda a gente sabia bem - alguém se aproximou de benjamim enquanto descansava. dormia e nem se apercebeu que lhe desligavam o coração. pensavam ter erradicado o monstro, mas os corpos continuaram a surgir e os corações a faltar. benjamim permanece, para a eternidade, culpado do crime de amar além das fronteiras do homem, fora do alcance da compreensão humana.

sábado, 1 de outubro de 2011

a promessa que ela fez

estava parado na fila
a aguardar a minha vez,
nesta cabeça se repetia
a promessa que ela fez.

as palavras tontas
que não ousamos partilhar,
são disparadas à toa
de olhar para olhar.

hoje se conta um ano,
à meia-noite e três,
ouvi num ténue sussurro
a promessa que ela fez.

no dia em que não dormi,
ou quis saber os "porquês",
surgia a ranger no peito
a promessa que ela fez.

desapareceu sem rasto
uma palavra em português.
ela nunca chegou a cumprir
aquela promessa que fez,
(mas eu ainda espero
a promessa que ela fez).