terça-feira, 28 de janeiro de 2014

efemeridades ilusórias

ah! o quando eu pensei ser verdade,
e que o fosse eu tanto implorei
e se o fosse tanto que eu jurei
abandonar toda a minha vaidade.

ah! se a ilusão pouco tivesse de real,
talvez eu pudesse ter sido diferente
e se diferente fosse — aparentemente,
tudo continuaria exactamente igual.

ah! que homem seria de mim,
se por um instante eu acreditasse
e se nesse instante eu te tocasse
como quem escreve adeus no fim?

ah! eu que tanto fui massacrado
todo este tempo sem o quereres
e inocentemente sem perceberes
que o mal foi teres ficado.

ah! o erro foi deixar-me amar-te
com a certeza de um sonho a sós,
cujas personagens só éramos nós
num mundo completamente à parte.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

retrato de um homem na cama

tenho o silêncio como ruído de fundo,
um cão a ladrar algures distante
e alguém a deambular pela rua lá de baixo.
oiço os sapatos de uma mulher segura de si,
sozinha à meia noite num deserto nocturno
que nada mais tem para dar do que chuva,
chuva essa que ainda está por vir.

no meio de tanta calma, a sua falta —
quem sabe mesmo, o seu excesso —
carrega aos ombros mensagens esquecidas
no preciso instante seguinte à sua criação,
são as palavras que ficam na garganta
presas, como as espinhas do peixe do jantar —
um lembrete para ter mais calma a comer.

uma porta abre-se e quem vem lá?
eu sei, se a experiência não me engana,
pelo ranger da água entre os canos da casa.
são as rotinas do homem que vive ali ao lado,
que eu aprendi a conhecer contra a vontade
e me fazem falta de cada vez que não está.
oh! mas ele nunca vem — apenas anda por lá.

falta-me pensar, sim. criar algum tipo de ideia
é o que alguém faz, quando está na cama.
pensa no dia que passou e no que está para vir,
mas esquece-se de pensar no momento em si,
porque o desperdiçou a pensar fora do tempo.
e é neste vai e vem de coisas incorpóreas
que uma vez mais nos entregamos aos sonhos.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

eu sou um (teu) cão

eu sou um cão. ão! ão! ão!
dócil, bem treinado e castrado,
o pêlo está um pouco eriçado,
mas vê que rica dentição!

por favor, atira-me a bola,
eu vou a correr, correr, correr!
só isso me fará esquecer
o doce abraço da tua sola.

ah! foram quantas lambidelas
que eu dei nos teus pés?
sim, muitas mais do que dez
e até à luz das velas.

mas a servidão e a lealdade
são os pecados gravosos
desses seres gananciosos
que só pedem liberdade.

eu sou um cão. ão! ão! ão!
bate-me, se me porto mal
e eu sou o mais doce animal
a implorar esse teu perdão.

um dia serás uma cadela
e eu não mais te quererei,
nem tão pouco te servirei
as papas numa tigela.

eu sou um cão. ão! ão! ão!
sou um macho sem cadela,
mas prefiro andar ter trela
a ser nada mais do que cão.

domingo, 12 de janeiro de 2014

o inverno nos teus olhos

o inverno chega a horas
aos teus olhos cor-de-mel
e eu pergunto "porque choras
as palavras num papel?"

as tuas noites em melancolia
são uma janela mal fechada
e eu abuso dessa cortesia
para uma conversa mais alargada.

aquece-me — essa tua presença,
mesmo fictícia — em verdade,
há quem já muito te pertença
e por ti sofre de saudade.

escondes o verão no cabelo
e, nos lábios, o outono,
trazes à minha prisão de gelo
um adeus ao abandono.

por mais que te minta,
mal consigo esconder:
desde a última quinta,
não te consigo esquecer.

se este meu relato é real,
a ousadia não tem limite,
calhar-me-á a pena capital
ao máximo que a lei permite.

és um sonho arrojado
que sonhei sem permissão —
esse pedido foi recusado
antes mesmo da submissão.

aqui espero o fim do inverno,
quando o sol brilhar, por fim,
no teu coração sem governo —
onde não há lugar para mim.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

visão de poeta

um homem escreve sobre as coisas que vê, quando o que invade os seus olhos atinge também o coração.

domingo, 5 de janeiro de 2014

insónia

não há vontade para falar,
ainda menos há para ouvir,
o homem está a estagnar
e o seu mundo está a sumir.

tenho mais uma noite em claro,
mais uma página por preencher
com esse pensamento raro
que não me deixa adormecer.

verga-se-me a fraca vontade
e falha-me a pouca coragem
para admitir que, na verdade,
estou aqui — mas só de passagem.

o sentimento é bem ridículo,
ainda mais o é quem o sente:
se o mantivesse num cubículo,
não sofreria, certamente.

esse sofrer é uma sentença
para a qual fugir não há ousadia,
que se esconde atrás da licença
de nos massacrar noite e dia.

comecei pela falta de sono
e terminei a falar em amor —
penso que ao meu abandono
faz muita falta o teu calor.