sábado, 9 de agosto de 2014

a pessoa que eu mais admiro

a pessoa que eu mais admiro não é, no sentido lato da palavra, uma pessoa. são duas pessoas e essas são o meu pai e a minha mãe. digo-o de coração e não como uma oração decorada, porque fica bem dizer ao domingo (e nem domingo é). é um facto da qual já me tinha apercebido — no fundo sempre soube — mas que, hoje, me atingiu de raspão.
admiro a minha mãe pela força extrema com que — esta mulher tão frágil — enfrentou o mundo durante mais de meio século. aturou as minhas atitudes deploráveis, as minhas rebeldias inoportunas, afastou os meus medos e nunca me julgou. isto no que diz respeito à minha pessoa, porque ainda tem força para sorrir. ainda encontra maneira de alimentar os músculos faciais, depois de toda a gente a ter calcado — eu inclusive e não me orgulho disso.
admiro o meu pai. sim, sobretudo, admiro o meu pai. apesar de não ter tido um bom começo familiar e de muito ter magoado a minha mãe. ainda que nunca a mim directamente, eu sinto empáticamente o sofrimento dela e quiçá seja mais rancoroso. ao contrário do que possa parecer, admiro-o muito mais por essa mesma razão. admiro-o, porque mudou.
o meu pai é uma daquelas pessoas de quem é impossível não gostar e talvez (ou de certeza) eu tenha alguma inveja ou ciúme dessa característica que, infelizmente, não herdei. eu não consigo ser como ele, sou bastante fácil de desprezar. o meu pai dá-se com toda a gente, de todas as classes sociais, e é o mesmo homem em qualquer situação. se, num momento, estiver a apertar a mão ao presidente da câmara, no seguinte está a cumprimentar o arrumador de carros que é lá ta terra da mulher (a minha mãe) e não se importa que o primeiro homem o veja com o segundo. pelo contrário, penso que até os apresentaria do seguinte modo "este é o meu amigo, o presidente da câmara," e depois "este é o meu amigo, o arrumador de carros," concluindo com "é lá da terra da minha mulher!" sim, para ele, são todos amigos e trata-os como tal. eu, por culpa do envenenamento mediático — ou, simplesmente, porque sou uma pessoa diferente — tenho certas dúvidas de que agiria da mesma forma.
vou só dar um exemplo de uma atitude típica do meu pai com a qual eu consigo relacionar-me. estávamos numa esplanada e uma das pessoas diz para o meu pai pedir um aperitivo extra, de borla, uma vez que ele conhece e trata por tu os donos do lugar. o meu pai levanta-se, pede um aperitivo extra para ele e outro para a pessoa que pediu — e paga ambos. a pessoa não se apercebeu e o meu pai não contou, sabendo perfeitamente de que lhe ofereceriam o dito aperitivo à borla, se assim o tivesse pedido.
a verdadeira amizade está em nunca nos fazermos valer dela, até ao momento em que mais ninguém nos pode acudir. nesse momento, contudo, não será necessário pedir — já lá estarão os amigos.
esta não é uma carta a ninguém, no sentido de que tem destinatários bem definidos. contudo, não quero que estes mesmos a leiam. assim, fica aqui solta e guardada. só espero, continuamente trabalhando para isso, poder um dia chegar aos calcanhares destas pessoas que me geraram, criaram e ainda aturam. se isso acontecer, então poderei ter algum orgulho na pessoa em que me tornei. até lá, sou imperfeito — mas em remodelação, com os melhores moldes que poderia pedir.