escrevi uma carta a ninguém,
que enviei sem destinatário,
na esperança que surja alguém
cansado de estar solitário.
falei de gostos e desgostos,
pessoas que tive e deixei,
amores imaginários e supostos
pelos quais eu nunca lutei.
enumerei perguntas diversas
num vasto questionário pessoal,
para evitar muitas conversas
que sempre terminam mal.
se o azar ou a fortuna quiser
trazer até mim uma resposta,
que seja de uma boa mulher
ou, pelo menos, bem disposta.
isto da solidão só é bonito
no primeiro segundo apenas,
no segundo já se ouve o grito —
vozes que se fizeram pequenas.
descrevi-me maior que o céu
e mal consigo chegar ao tecto,
esse que vendo não sou eu,
mas leva todo o meu afecto.
imagens minhas não possuo
que, aos outros, não enojem,
então falsas eu construo
e lá me ouvem e não fogem.
a carta em vão foi redigida
da maneira mais eloquente,
com a minha caneta preferida
e um toque de coração quente.
por tantas mãos há-de passar
e nenhumas verão o que tem,
mas agora tenho algo a esperar —
essa resposta que nunca vem.
o amor é contagiosa doença
e, de todas, a que mata mais
com a dor na firme crença
que deixamos de ser mortais.
a nossa alma é-nos arrancada
e perdida, sem par, vagueia
onde só de mão bem dada
sob o céu azul se encadeia.