quinta-feira, 22 de março de 2012

uma história moderna

apetece-me contar uma história moderna, que se enquadre nos dias que me rodeiam. não é transcendente, mas é fora do comum vulgar. partilho a história do meu amigo ricardo, incompreendido e incapaz de transmitir o real significado de cada palavra que proferia.
eu só me apercebi realmente da verdade, sobre o mistério que o rodeava, no fim, tarde demais. mas houve outro alguém, ignorado por todos, que sempre segurou o ricardo. chamava-se jorge e talvez tenha sido o melhor e mais verdadeiro amigo que o ricardo já teve, certamente mais capaz do que eu ou qualquer outra pessoa que eu conheça.
que o ricardo era um rapaz diferente, mesmo um pouco perturbado, ninguém negava. mantinha-se afastado de tudo, de todos, do próprio mundo que o segurava pelos pés, mesmo quando estava connosco, rodeado de todos os seus amigos. passava grande parte do tempo a divagar em universos estranhos, fruto da sua magicação, onde era senhor de todas as leis da física. o resto do que sobrava era partilhado com o jorge, com quem chegava a ter discussões pela noite dentro.
na altura, eu, ou qualquer outro de nós, fomos incapazes de dar a devida atenção à estranha relação que havia entre os dois. agora, passamos os serões de sábado à noite a relembrar todos os episódios, de todas as vezes que o ricardo trazia o jorge e não dirigiam a voz a outra pessoa. ali ficavam, encostados um no outro, numa troca de palavras quase imperceptível ao mundo em seu redor. pensávamos, cá para nós, que era apenas alguém extravagante na sua personalidade. a verdade é que estávamos apenas a inventar desculpas para o facto de não nos querermos sequer preocupar com isso. a cada um os seus flagelos!
como alguém que vem à tona da água já sem fôlego algum, o ricardo tornou-se aquela pessoa que todos esperávamos que ele fosse, completa e perfeitamente banal. passou a conversar com todos nós um pouco, cessando todos aqueles serões que passava imerso no seu silêncio. pela mudança de atitude, o desviar de conversa quando lhe perguntávamos sobre a sua estranheza passada e a subida do seu nível médio de aparente felicidade, todos supusemos que a relação com o jorge teria conhecido o seu fim.
finalmente, éramos um grupo de amigos bastante normal e capaz de passar despercebido em qualquer lugar. como poderia alguém esperar que prevíssemos os eventos que se desenrolariam naquele sábado à tarde? tudo estava bem, não podia ser mais aborrecido de tão quotidiano que era.
nessa noite, o ricardo não apareceu para tomar café. confesso que não me preocupei muito, eu ou qualquer um dos restantes, apesar de ele se encontrar incomunicativo. por vezes, ocorrem imprevistos.
acordei no domingo de manhã com uma chamada da mãe do ricardo. esse foi o momento em que me apercebi de tudo, uma epifania. a pobre senhora mal se entendia de tanto se engasgar nas lágrimas, ninguém sabia do ricardo. não aparecia em casa desde o sábado à tarde, nem para dormir. isto representava uma atitude muito fora do normal, mesmo para o ricardo. penso que ele sempre tentou, até ao máximo que conseguiu, fingir ser um rapaz como os outros. talvez tenha sido esse o problema, de tanto fingir esqueceu-se daquilo que era realidade ou ficção.
umas horas mais tarde, o corpo do ricardo foi encontrado pela polícia. estava sentado, sereno e quase parecia estar vivo, como numa das suas longas conversas com o jorge. o padre, que ia realizar a missa nessa tarde, deu o alerta, ao deparar-se com o corpo do meu amigo já sem vida.
a polícia judiciária não encontrou evidência de qualquer acto criminoso e o relatório do médico legista, que realizou a autópsia ao ricardo, apresentava as mesmas conclusões. morte súbita devido a uma taquicardia ventricular seguida de uma fibrilação ventricular, podia ler-se.
eu imaginei um cenário diferente e tenho quase a certeza tratar-se do que realmente aconteceu na igreja. na minha cabeça, tudo se desenrola como um filme mudo. o ricardo foi até aquele lugar para confrontar o jorge, exigindo que o deixasse definitivamente em paz, que estava bem e não precisava mais dele. o jorge, que se encontrava sentado ao seu lado, levantou-se sem dizer uma palavra e foi-se embora. foi quando o ricardo respirou de alivio e fechou os olhos num pestanejar prolongado que o jorge surgiu atrás dele, agarrando-o pelo pescoço com o braço. não bastou muito para que parasse de lutar, o jorge sempre foi bem mais forte do que o ricardo. para mim, foi ele que o matou. foi o jorge que matou o ricardo.