foi, possivelmente, a mulher mais bonita que vi em toda a minha curta vida. não me arrependo um segundo que seja de a ter amado tão honestamente, de a ter seguido tão fielmente ou de a ter encontrado tão desesperadamente. todos os acontecimentos anteriores guiaram-nos àquele ponto de encontro, no momento mais certo. não poderia ter-se desenrolado de qualquer outro jeito. só guardo gotas de saudade, que escorrem nas arejadas paredes do meu destronado coração. adoro eventos culturais e observar desconhecidos a conviver entre si. nada me dá mais gozo do que sentir-me parte desta fantástica sociedade, escondido de todos num mar de caras tão idênticas quanto as demais. contudo, era um mero estudante de poucas posses. a minha agenda cultural sofria um abrupto corte de cada vez que abria a carteira. no entanto, sempre que há um acontecimento público gratuito, faço sentir a minha ténue presença. houve um concerto, na zona histórica da cidade. era agosto, uma segunda-feira à noite, e tinha pouco ou nada para fazer. cheguei ao recinto e vislumbrei aquela mulher. perdi-me. abri caminho até encontrar uma boa posição, atrás dela. tinha cabelo cor-de-toranja, a pele branca como a farinha e um olhar penetrante. tinha também um filho. o pequeno rapaz de cabelo loiro, não mais de três anos de idade, alternava entre o carrinho e o colo. para mim, era a única explicação porque tal vénus permanecia isolada em solidão num perímetro circular desmilitarizado. era como se carregasse um sinal no pescoço com o aviso "material em segunda mão". quando a música começou, ela fez piruetas ao bebé, que sorria e sorria. eu não me contive, perante tamanha ternura, e sorri também. tão alto foi o meu sorriso que ecoou por todo o recinto! ela ouviu-o e espreitou para trás, apanhando-me em flagrante delito. esboçou-me um pequeno movimento dos lábios, como uma carta onde se lê "obrigado, por seres simpático para o meu pequeno". mas o meu coração gritava "esta luxúria consome-me". o que aconteceu em seguida, não sou capaz de especificar. é uma visão turva, uma névoa espessa que esconde a palma da mão. assim que o espectáculo terminou, fomos até uma esplanada próxima. ficámos a conversar sobre tudo e sobre nada, este em particular. faziam-se ocasionais caretas para o menino no berço, até que adormeceu de cansado. era mãe solteira e o homem nunca mais se viu. pensa-se que trabalha em construção civil na suíça. tornámo-nos incrivelmente íntimos, num pequeno piscar de olhos. os nossos dias eram preenchidos com brincadeiras a três. eu saía das aulas e corria para o apartamento dela, onde ansiava o seu regresso da padaria onde trabalhava. percorremos as terras deste país, com as minhas mãos no volante do carro que os pais lhe deram. adormecemos ao pé do mar e depois adormecemos ao pé do rio, mas acordámos junto de uma torre abandonada, que exploramos minuciosamente em busca de tesouros perdidos. uns meses depois, chegaram as terríveis discussões. os meus sonhos de me tornar professor universitário diminuíam com o aguçar do meu amor por aquela mulher. muitos anos de estudos marcavam o meu futuro, com a impossibilidade de suportar aquela família que bateu à minha porta. a minha fonte de rendimento eram os meus progenitores, das quais não poderia exigir mais. mas nada disso importou. pensei em terminar o curso e esquecer a carreira docente, ponderando arranjar um emprego. ser o homem que a sociedade que tanto admirei esperava que fosse. sempre sonhei um dia ser o orgulhoso pai de uma linda menina a quem chamaria benedita flor e eterno sabor. contudo, nunca aceitaria ter um filho desta mulher. sei que se tal acontecesse, o amor que sinto pelo pequeno rapaz iria diminuir e tornar-se marginal. abdiquei de dois sonhos, mas abdicaria de dez mais, sem pensar. disse-me, certa noite ao deitar "o menino está doente, é terminal", e nunca mais se falou disso. não pude evitar um sonhar egoísta sobre a desgraça. prosseguir o meu doutoramento, incentivá-la a terminar o curso e retomar as rédeas daquela que era uma luta há muito esquecida. de um momento para o outro, tão abrupto quanto o seu início, tudo terminou. cheguei um dia a casa e esperei por ela. esperei, esperei e esperei. esperei dias, esperei semanas e esperei meses. pensei "ela não era capaz de abandonar esta bela criatura de cabelos dourados". os anos passaram-se e ela nunca regressou. o rapaz cresceu e tomei a liberdade de mudar o seu nome para benjamim. durante as noites mais frias, quando o céu se encontra cristalino, vamos até ao observatório da universidade. ficamos a contar as estrelas, como os dias que se passaram desde que ela largou as amarras de uma vida que nunca pediu e trocou-as pela liberdade de um sonho que ainda persegue.