viu partir o último passageiro e trancou a porta. calmamente, levantou-se da sua posição de comando e caminhou em direcção aos lugares remotos que se escondem no fundo. sentou-se como os restantes, hoje não é mais o condutor. o ponteiro do relógio aponta para um duplo dueto, as horas contam-se em vinte. suspirou e, ao levar as mãos à cabeça, começou a chorar. não como um bebé, mas como uma estátua num dia chuvoso. vislumbrou toda uma vida repleta de gente, sempre a entrar e a sair, na máscara de um volante. todas essas vidas descritas pelas funções posição-tempo que se intersectaram com a sua por alguns instantes. lembra-se de cada conversa escutada: as discussões, os festejos, desabafos e medos. ainda que as estradas fossem sempre pintadas de igual, havia, em cada novo dia, algo de peculiar à espera de ser descoberto. a ténue repetição das sirenes torna-se intensa. aproximam-se montados em cavalos bravos, com as tochas e os machados em punho exigindo sangue do seu. com toda a razão, ele os espera. desta vez o destino foi outro, para lá das portas da morte. uma harmonia melancólica surge pé-ante-pé, mal se faz notar, e gradualmente inunda aquele enrugado coração da mais salgada tristeza. só há uma forma de se reconciliar consigo, expurgar o veneno da cobardia que o assola. a saída será grandiosa, barulhenta e mediática. para sempre se hão-de lembrar do nome que vergonhosamente desconhece, da expressão que vira apenas marcada pelo terror. a pequena rapariga, cuja alma entrou no seu autocarro demasiado cedo e cujo corpo se esqueceu na valeta embebido em sangue, merece um perdão nas páginas da história. por fim o encontram, apaticamente a aguardar os condecorados vigilantes da sociedade que juraram proteger os indefesos e injustiçados, barricado no fundo daquele veículo que foi para ele mais do que uma segunda casa. levantou-se com o som das janelas a partir e vislumbrou os estilhaços a voar na sua direcção. fechou os olhos e imaginou gotas do mar, expelidas pelas ondas que se destroem ao embater na areia em torno dos seus pés. o fim é luminoso, estrondoso, um autêntico épico. agora jaz também ele no chão que acaricia suavemente, agarrando-se aos últimos segundos em contagem regressiva. tudo foi o que devia ter sido.