sexta-feira, 30 de abril de 2010

dois fazem um

é manhã
faz um ângulo agudo no céu, o sol
pela janela penetra
toca o despertador
não oiço
os braços estão dormentes
nada sinto
apenas uma carícia
ténue, quase imperceptível
alguém chegou
'olá', disse
não respondi
voltei a cara, tentei cair no sono
'está na hora', continuou
os lençóis fogem-me
'preguiçoso', e riu-se
'que fazes tu aqui?', perguntei tremido
'estou aqui para ti, só para ti', retorquiu
enfrentei-lhe o olhar, perdi-me
naquele momento, perfurou-me a alma
na verdade, soube bem
alimentou-me o desejo
saciou-me a sede
acalmou-me o medo
retirou-me a mágoa
afagou-me gentilmente, como ninguém antes
que voz meiga
suaves mãos de seda
negros, corrosivos olhos
o abraço é frio, mas não apetece largar
perguntei se estava certa
'sim, és tu', confirmou
no entanto, soube bem
perguntou o meu inimigo
disse o homem
perguntou o meu amigo
disse o silêncio do vácuo
perguntou o meu medo
disse o teatro
perguntou o meu arrependimento
disse o sorriso em demasia
perguntou o meu desejo
disse não ter mais que rir
não forçadamente
não para as pessoas que passam
não mais fingir simpatia
lei que ninguém atreve infringir
é atirado às bocas do mundo
perguntou porquê
disse que para ser amado
há que comprazer, a todo o momento
disse que para ser odiado
é bem mais simples, apenas nada
'a mim terás, eternamente', tentou-me
afugentei-a e mais forte foi o seu abraço
gélido ao coração
e parou
corte
'toda eu sou tua', apaziguou-me
mas eu exclamei 'o teu nome, qual é?'
deliciosamente respondeu, 'morte'.