numa noite terrível, terrível noite de luar,
entre o pó do sótão eu estava a tramar
a derradeira armadilha à minha solidão.
talvez, um dia, os outros entenderão
que, por mais de vinte anos, esperei por ti
e o som da tua voz eu nunca ouvi.
fiz uma boneca de trapos, a partir de velharias —
esquecidas no sótão e já viram melhores dias.
"nunca mais só!", quantas vezes ao ar
eu repeti e repeti até arfar?
instaurou-se uma festa em todo o meu redor
e deliciei-me naquele cenário de horror:
a tempestade arrancava árvores pelas raízes
e o meu coração, carregado de cicatrizes,
ansiava pelo beijo da boneca sem vida,
que me fitava com uma expressão entorpecida.
a noite lá me trouxe um óptimo regalo:
relâmpagos intermitentes num fixo intervalo.
liguei os cabos ao ferro no telhado,
a chuva garantia que estava bem ensopado.
eu pensei e pensei, na minha lúcida demência,
ser capaz de criar uma artificial consciência.
no pescoço da boneca, acrescentei dois pregos,
enquanto me sobrevoava um bando de morcegos.
a corrente eléctrica fluiu do céu até mim
e eu esperneei-me num autêntico vil frenesim.
os sentidos abandonaram-me à própria desgraça
e a razão, por sinal, é também escassa.
o zumbido das palavras exclamadas em vão
desvanece para se tornar nada mais que ilusão.
resta-me a memória daquela boneca que fiz
e sinto que a vida se segura por um triz.
agora sim... finalmente, foi-se tudo!
não só fiquei cego, mas também surdo e mudo.
o sistema nervoso deixou de me responder,
tudo me dói, mas nem me sinto tremer.
desejei ter algo construído à tua imagem
para me conseguir acalmar e dar alguma coragem,
mas a boneca de trapos apenas me enlouqueceu
e tudo o que havia em mim... simplesmente... morreu.