segunda-feira, 5 de julho de 2010

a carta que nunca te enviarei

querido meu amor,
mulher que sempre amarei,

escrevo-te esta carta em pleno desespero. gostava que as circunstâncias fossem outras, que a física se invertesse, que o tempo recuasse, que o espaço encolhesse, a distância entre nós fosse nula e o tempo infinito. mas não. é verão e o calor que nos assola é abrasador, não se pode deambular pela cidade nas horas em que mais me sinto de ressaca. aquele bichinho que morde este meu coração, a vontade de percorrer todos os 507 quilómetros quadrados das nossas 34 freguesias na fútil esperança que te apeteça um gelado. afastas-te da tua casa de morada desconhecida e eu posso apaziguar esta aflição, tormento infernal, ao observar-te, bela criatura, enquanto sacias a tua sede. como eu gostava de me aproximar de ti, olhar-te esses oásis de lágrimas e ler a mensagem que cravaram no teu peito. como eu gostava que essa fosse 'não há mais barreiras, a bandeira é branca e o sinal verde. estou aqui, ouve-me acelerar e leva-me ao limite. sim, dessa maneira'. o beijo que te dou é uma singularidade de gravidade infinita, o horizonte de acontecimentos que nos abraça e protege do universo exterior. aqui só existe amor, lábios e língua. ressoam em sincronia enquanto a força entre nós esmaga e os nossos corações se fundem num só. a conservação do momento que nos acelera à medida que nos colapsamos. daqui, nem a luz consegue escapar!
gosto de imaginar que somos um átomo de hidrogénio, tu és o protão e eu o electrão. somos estáveis, somos auto-suficientes, somos sozinhos e atraí-mo-nos mutuamente sem, alguma vez, nos podermos verdadeiramente tocar. aqueles míseros picometros que nos separam são mais um pesadelo de raio superior ao do universo. mas para o lixo com todas as teorias, quero sentir a repulsão da matéria que compõe o teu corpo de vénus contra mim, a fricção que nos eleva ao ponto de fusão do tungsténio! mas se apenas passar de carro pela padaria nova, espreitar e conseguir te reconhecer, por entre os vultos ensurdecedores, no teu melhor vestido, aquele que tu adoras, eu sou um homem feliz. chego a casa, estaciono o automóvel na garagem e corro para a cama onde me deito a fitar o tecto e a sonhar que te trauteio uma balada. sim, o resultado é inevitável, um sorriso capaz de transformar um ser humano em mil gotas de mercúrio. daquelas que as outras tentam agarrar, mas nem com as unhas!
queria que tudo fosse simples, mas nem esta carta que jamais te chegará às mãos o é. se fosses um botão de inspiração, o meu, eras um bem encravado que nem com o alicate volta ao lugar. que posso eu fazer? condenas-me por libertar de mim todo o português que jorra da fonte que originaste? eu te digo, não te absolvo inteiramente. quem sabe se, no universo complexo, o teu alter ego saltou do eixo real para o eixo imaginário, tocou-me de leve (como que a medo) e regressou ao lugar, como se nada fosse. e eu que pensava ter-me apaixonado por ti. perdidamente!
deves tomar-me por rude. quem escreve cartas de amor sem elevar o destinatário ao trono dos deuses? tu és a criatura mais bela que esta besta já capturou com o olhar. tu és a doçura que leva à diabetes em microssegundos. tu és a suavidade que anula o atrito, cessando o consumo constante de energia. tu és o melhor amor a que este pobre coração foi dado de provar. tu és o meu universo, sejas rainha ou transeunte. sim, mas o que importa o que tu és? em tua casa foram colados espelhos na casa de banho, à tua porta depositadas flores de falsos romeos. estas palavras que te dizem nas cartas de amor, que tomas como certas, que outros reconhecem tão prontamente, não te trazem nada de novo, nada de espectacular. mas eu, de certo, tas direi. então, quem escreve cartas de amor sem a promessa de amor eterno, sem a referência à beleza sem igual? eu cá não, não sou desses. gosto das minhas cartas de amor à maneira tradicional.
diz que me amas, responde que me odeias. tão ténue é a linha que separa estes sentimentos conjugados que eu não me importo. somente te peço, não me ignores.

sinceramente teu,
o rapaz que nunca te conheceu.