quando andava a viajar pelo país, passei a noite numa pequena e remota aldeia. parecia recortada da idade das trevas, aquando da temível inquisição católica na europa, e colada directamente nos nossos dias. à noite, durante um agradável serão para beber chá, o senhor serafim, que amavelmente me cedeu uma cama para dormir, partilhou comigo uma história que me fez e faz arrepiar ao nível da própria espinha. havia um pequeno mas estranho rapaz há, talvez, uns dez anos atrás. o seu nome era leonardo e ele detestava-o. isto porque, o seu verdadeiro fascínio residia nos lobos, que ouvia chamar por ele à noite, e não nos aborrecidos leopardos que aquele nome parecia evocar. os seus pais estavam bem cientes daquela hedionda obsessão que o rapaz tinha em fugir para ser um lobo. todas as noites ele tentava escapulir-se e, em cada uma delas, as suas tentativas eram frustradas, completamente em vão. leonardo adormecia a chorar. sabia que o uivar que ecoava pelo vale eram os seus verdadeiros progenitores a entoar-lhe uma canção de embalar. chamaram-no de idiota e acusaram-no de lunático. a cada dia que passava, leonardo sentia-se mais e mais animal. o seu estatuto na pequena aldeia situava-se abaixo dos valentes cães de caça. tal era o seu desejo em partir, que os seus pais viram-se forçados a acorrentar o rapaz. não havia qualquer sombra de liberdade para ele. o seu quarto era uma masmorra com paredes de meio metro e uma janela gradeada a aço. só saía à rua pelas mãos de um dos seus familiares, devidamente segurado por uma grossa corda em torno do pescoço. mas um dia, enquanto o pai comprava carne, o pequeno leonardo apoderou-se de um dos utensílios que se encontravam descuidadamente espalhados pela bancada. cortou as amarras que o prendiam e fugiu. fugiu como jamais havia corrido alguma vez no passado. fugiu e nunca mais alguém o viu. leonardo não podia estar mais feliz, ia ter com os seus progenitores lobo e aprender as suas peculiares interacções sociais. mas, acima de tudo, ia uivar e caçar como os grandes caninos ancestrais. uma semana passou, desde o desaparecimento do pequeno jovem. serafim, que andava a vaguear as terras altas com o seu cão de caça, deparou-se com algo estranho no chão. aproximou-se para inspeccionar o que tanto interesse suscitava ao seu companheiro peludo e horrorizou-se com o que viu. eram restos humanos, incrustados numa coagulada poça de sangue e alguns pedaços de roupa rasgada. era evidente que se tratava de uma criança e a roupa assemelhava-se àquela de leonardo, mas pouco mais era perceptível. fiquei absolutamente chocado com tais alegações, tanto pela maneira como trataram o pequeno rapaz, como pelo destino que encontrou. inquiri se conseguiram ter a certeza tratar-se do jovem foragido. serafim respondeu-me que, escondido no sangue, jazia um pequeno medalhão que se sabia pertencer a leonardo. algo que o seu avô, a quem costumavam chamar de lobisomem, lhe confiou e que nunca deixara de usar. as marcas cravadas na carne eram idênticas àquelas que os lobos haviam outrora cravado no gado.