quarta-feira, 6 de abril de 2011

a prisão de vidro

em casa dos avós, Benjamim viu um jarro de vidro, daqueles que se usam para guardar compota, tombado no azulejo do barracão. intrigado, pegou nele e levou-o até à cozinha, onde perguntou "avó, porque é que este jarro estava vazio e caído no chão?" ao que prontamente lhe respondeu "sabes Benjamim, estes jarros de vidro são perfeitos para guardar coisas. até servem como prisões e é por isso que às vezes não gostam deles e os tombam até quebrar." não foi uma resposta muito satisfatória, por isso ele insistiu "mas 'vó, porque é quem alguém iria usar um jarro de compota como uma prisão? é demasiado pequeno para alguém lá caber." a senhora interrompeu o serviço, aproximou-se do neto e colocou-se de joelhos até ficar ao seu nível, dizendo "meu querido Benjamim, se calhar já está na hora de ouvires esta história. anda, corre para o avô e diz-lhe que a queres ouvir." e assim fez o menino, bastante empolgado. o que poderá ser? parece tão misteriosa. "avô, avô, avô! conta-me a história da prisão de vidro, a avó diz que já chegou o tempo!" e o simpático sorriso retorquiu eloquentemente "é uma história de partir o coração, tens a certeza que a aguentas?" ao que olhos regalados não importaram e ouvidos empolgados só diziam "sim, sim, sim!" sentaram-se e assim começou.
era uma vez, há muito, muito tempo, no tempo em que ainda existiam gigantes, fadas e verdadeiro amor. Bernardo, o filho do ferreiro, trabalhava arduamente para aprender, o mais rapidamente possível, a profissão que se havia transmitido de geração em geração. queria tomar conta do negócio para que o seu pai pudesse finalmente descansar, mas não era a única razão — não, senhor! assim que conseguisse garantir um próspero futuro, iria finalmente declarar-se a Isabel. Isabel trabalhava directamente para o rei, carregando todos os dias pilhas de roupa suja do castelo até ao rio para serem lavadas. essa gente da corte é tão porca, sujam tudo de tal maneira! ainda que lhe custasse transportar tudo sozinha, ela fazia sempre o caminho mais longo, mas que passava bem no centro da vila, onde Bernardo trabalhava o ferro ao pé da porta. todos os dias, desde que tinham memória, Bernardo e Isabel conseguiam transformar o tempo e aqueles cinco minutos, em que ela abrandava o passo e ele parava de martelar na bigorna, tornavam-se dias inteiros a rebolar pela erva dos pastos nas margens do rio. nas suas cabeças existiam mais palavras do que qualquer casal possa dizer ao longo de uma vida inteira juntos, mas que cá para fora se suprimiam em olhares envergonhados e sorrisos a tremer. em cada coração abafava-se uma vontade crescente e insuportável de largar tudo e correr desalmadamente para os braços um do outro. na vida, raramente se tem o que se deseja e ainda mais difícil é encontrar um amor verdadeiro e puro. assim, Bernardo e Isabel sucumbiram à loucura e consumaram-se pela calada da noite sobre o olhar vigilante de milhões de estrelas numa noite de lua nova. alguém os viu a sair da vila de mãos grudadas e, no dia seguinte, todos estavam cientes do que havia sucedido. o rei não estava contente e ordenou aos seus gigantes que os aprisionassem dentro de colossais jarros de vidro, cada um em sua prisão individual. a sentença? e para que crime? o que ninguém sabia era que o rei morria de amores por Isabel, em silencioso segredo por ela não ser realeza. como punição, Bernardo e Isabel passariam o resto das suas vidas a olharem-se através de paredes invisíveis, tão próximos um do outro sem jamais se poderem voltar a tocar. tal como o rei a observara do castelo com a mão sobre o coração, assim eles iriam experimentar a dor agoniante que o havia atormentado tão avassaladoramente. nunca houve, em toda a história do homem, uma dor tão horrível como a que matou Bernardo e Isabel.
"mas é assim que termina, avô? não pode acabar assim, esqueceste-te do final!" perguntou assustado o menino. com certeza nas suas palavras, o velho senhor concluiu "é assim que acaba, Benjamim. nem todas as histórias têm um final feliz e tens de aprender isso. mas vou revelar-te um pequeno segredo. conta-se que Bernardo e Isabel choraram até morrer e as suas lágrimas, que só um verdadeiro amor consegue criar, eram tão doces que sempre que um dos gigantes trazia fruta para se alimentarem, esta transformava-se imediatamente em compota."