segunda-feira, 23 de maio de 2011

verdadeiro romance ou: o dia em que passei das palavras aos actos

vi-a entrar no café e sentou-se na mesa da frente. eu estava no lugar encostado à janela para poder ver as pessoas serem felizes lá fora na rua. ela sentou-se no lugar simétrico ao meu. que outra razão, se não um interesse óbvio em atormentar a minha pessoa com seduções - pensamentos de luxúria? parei de escrever, a concentração, e pior, a inspiração me abandonaram. senti-me desnorteado, perdido e incomodado. calmamente pousei a caneta e encerrei as páginas, bebi o café de um gole e tentei encher os pensamentos com suposições das vidas que observava pelo vidro. senti calafrios a percorrem a coluna, desde a garganta até à ponta dos pés. aqueles olhos, escondidos feito cobardes atrás dos lábios com batom vermelho, despiam-me publicamente de todas as roupas e máscaras. perfeitamente nu, a pele enrugava com o frio e o passar do tempo, e aquele olhar cada vez mais próximo de mim. como se, num piscar de olhos, a mulher se havia sentado na cadeira da frente da minha mesa. agora a voz dela persegue-me e a sua língua humidifica os flamejantes pedaços de carne que gritam obscenidades ao meu ouvido. agarrou-me a mão e eu não consegui largar. abandonámos aquele lugar tortuoso e fomos para a rua de mãos grudadas. nunca me havia sentido tão desconfortável como naquele preciso momento, tão deslocado e indefeso. apático, segui-a até à porta de uma casa antiga mas perfeitamente estimada. uma casa valiosíssima, de sonho para muitos. entrámos juntos e ouvi-a trancar a porta atrás de nós. não restavam dúvidas, aquela louca mulher desejava-me. haviam muitas divisões, todas ricamente decoradas com as mais bonitas peças e antiguidades. à medida que nos aproximávamos de um quarto, comecei a ouvir um som abafado e periódico. o coração daquela mulher estava a acelerar, a bater com uma intensidade crescente contra as paredes do peito. parecia gritar "possui-me" em pura agonia. temi que a própria terra estremecesse com tão violenta excitação. a única maneira de acalmar tal besta seria satisfazer-lhe o desejo. aceitei a tarefa que tinha em mãos e encontrei harmonia no acto que estava prestes a perpetuar. beijei aquela mulher, abracei-a como só um homem consegue e coloquei o seu corpo sobre a cama que se encontrava encostada à parede. aquele quarto era mais negro que um coração rejeitado numa noite sem luar e nada se distinguia com a excepção da cama que, pela bela composição, se encontrava perfeitamente alinhada com os poucos raios de luz que provinham da pequena janela. depois de a despir, atei-lhe os quatros membros à estrutura que suportava o colchão e também eu retirei as minhas roupas. passei na cozinha uma última vez e retomei o meu lugar no quarto, junto dela. aquele violento coração desistia de bater à medida que a satisfazia de todas as maneiras que me ocorriam. senti-me em paz e uma avassaladora calma apoderou-se de todo o meu ser. como uma sinfonia muda de instrumentos imaginários, o som da faca a dilacerar aquele exposto torso extasiou-me tal droga alucinogénica. havia sangue a jorrar das artérias principais que tentei dilatar com os próprios dedos. senti-me dançar como um miúdo a brincar despreocupado numa fonte do parque. o coração já não batia e a cara daquela mulher não mais me atormentava, os olhos fixavam um ponto acima da testa e gravou-se uma expressão de perfeita dor. continuei a perfurar o peito até que consegui vislumbrar o vil órgão escondido, atrás de costelas estilhaçadas. peguei-lhe com uma única mão e elevei-o ao nível dos olhos. pensei para mim "como é possível algo tão misero levar-me à loucura, privando-me de vontade própria, com uma simples vibração?". coloquei-o na sua mão esquerda, que estava suspensa. tomei um banho e vesti-me voltado para um corpo desprovido de vida, mas repleto de prazer. na minha cabeça fervilhavam ideias. retornei ao café, abri o pequeno caderno e continuei a minha escrita como se tudo tivesse sido um delírio fictício de um olhar não correspondido.